Há mais de 14 anos de portas abertas para a literatura, o teatro e a música e descomprometida com a estética mercadológica em suas iniciativas, a Vila Cultural Cemitério de Automóveis chegou ao momento mais delicado de sua história. Sem poder realizar eventos e sem o apoio do Poder Público, a estratégia é fechar as portas, porém sem sair completamente de cena. Para saldar as despesas da mudança e da entrega do imóvel, no número 342 da avenida Arthur Thomas, um projeto de financiamento coletivo entra em sua fase final de arrecadações, em agosto. Enquanto isso, a equipe já está se reorganizando em torno dos projetos que não serão descontinuados, mas poderão ser adaptados para as novas “regras” de convívio social trazidas pela pandemia do novo coronavírus.

“Nós somos ‘cabeça dura’. Tem uma letra do Ademir Assunção, o ‘Pinduca’, que fala assim: "Eu sou carne de pescoço, osso duro de roer. Eu sou o cão. Lato, mordo, arreganho os dentes." A gente é assim. Claro, com as nossas limitações frente a toda esta questão social e política de hoje. Mas não vamos desistir porque temos esse compromisso estético e cultural com a sociedade”, avaliou a idealizadora da Vila, Christine Viana.

Para garantir o pagamento de dois meses de aluguel, a pintura do imóvel, contas e custos inerentes à mudança são necessários R$ 15 mil. Mas, até esta semana, pouco mais de 25% deste valor havia sido arrecadado na plataforma virtual. De acordo com ela, o valor também vai ser usado para o pagamento de serviços, como o aluguel de andaimes e o transporte das arquibancadas, que deverão ficar no Canto do Marl, sede do Movimento dos Artistas de Rua de Londrina. Alguns itens também vão ser doados para o Lar Anália Franco, enquanto parte do cenário será guardado em sua casa.

O clima de despedida até poderia se encaixar nos versos do poeta e editor da geração Beat, Lawrence Ferlinghetti, inspiração do londrinense Mário Bortollotto quando da criação do grupo de teatro, em 1982, e cujo nome - Cemitério de Automóveis, aparece nos versos de “Obbligato do Bicho Louco”, de 1958. “Vamos. Venha. Vamos tirar tudo do bolso e desaparecer(...) Vamos parar de nos preocupar com os pagamentos. Eles que venham e levem tudo, seja lá o que for pelo que pagamos. E que levem até a nós”, publicou.

Mas, deixar de se preocupar com as contas não é exatamente o que o grupo Aarpa (Atrito Arte Artistas e Produtores Associados), formado também pelo jornalista Mário Fragoso, pretende fazer neste momento. Com duas montagens teatrais programadas para estrearem no final deste ano suspensas, dentre outros projetos aguardando o desfecho da pandemia, a ideia de manter o espaço com recursos próprios foi rapidamente considerada uma “loucura”. Aquilo que seria possível apenas na imaginação de Ferlinghetti, fundador de uma das mais importantes editoras da geração de 1960 norte-americana, a City Lights, não caberia no roteiro de uma Londrina que mudou muito, deixou de abraçar as artes como antes e se entregou ao “conservadorismo”, brincou.

Vila tem um trabalho histórico

Mário Fragoso em "Balada de um Palhaço"; um dos muitos projetos da Vila Cultural Cemitério de Automóveis com outros parceiros
Mário Fragoso em "Balada de um Palhaço"; um dos muitos projetos da Vila Cultural Cemitério de Automóveis com outros parceiros | Foto: César Augusto/ Divulgação

Em conversa com a FOLHA, Fragoso não escondeu a frustração de não ver o nome do grupo na lista de projetos aprovados no edital destinado às vilas culturais do Promic (Programa Municipal de Incentivo à Cultura), divulgado em junho. Embora reconheça a competência dos colegas concorrentes, lembrou que mais de 30 mil livros já foram distribuídos pela equipe, mais de 130 autores londrinenses tiveram suas obras publicadas e que, ao longo desta trajetória, também foi possível fazer a poesia circular pelas ruas do centro de Londrina até os distritos rurais em projetos como o bem humorado “Assalto Literário”. Um "contraponto" a uma das principais caraterísticas do Brasil: a corrupção.

“Andei pesquisando. Na França, as pessoas leem, em média 18 livros por ano. Na Argentina, que não por acaso tem um histórico de mobilização política muito mais intenso que nós, eles leem entre quatro e cinco. Nós, quando vi, líamos em média dois livros. Penso que isso que fazemos é um trabalho fundamental num País que pretende ser grande um dia”, avaliou.

Por este motivo que projetos como o sarau "Prosa, Poesia e Outras Delícias" e a "Nova Antologia dos Poetas Londrinenses", parceria com o festival literário Londrix, não deixarão de ser realizados, garantiu Viana. Como Ferlinghetti, que aos 101 anos acaba de ter dois livros em português anunciados pela Editora 34, para novembro e final de 2021, a "teimosia" em continuar produzindo também se faz presente no norte do Paraná. Algumas doenças serão eternamente incuráveis.

Para colaborar com a vaquinha virtual acessem este link: Vila Cultural Cemitério de Automóveis

Assista ao vídeo do Cemitério de Automóveis: