Depois do samba, da caipirinha, da feijoada, da depilação e das sandálias Havaianas, agora chegou a vez de a literatura brasileira encantar os gringos. Na semana passada, a escritora e podcaster norte-americana Courtney Henning Novak postou um vídeo nas redes sociais demonstrando todo o seu deslumbramento com o livro Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis (1839-1908). Foi o suficiente para a obra subir ao topo da lista de títulos latino-americanos e caribenhos mais vendidos da Amazon nos Estados Unidos. O vídeo viralizou e já tem até brasileiro interessado em conhecer o autor.

Novak lançou a si mesma o desafio de ler um livro de cada país do mundo, seguindo a ordem alfabética. Ao chegar à letra B, deparou-se com a obra lançada em 1881, considerada o marco inicial do Realismo no Brasil. “Preciso ter uma conversa com o pessoal do Brasil. Por que não me avisaram antes que este é o melhor livro já escrito?”, questionou a escritora no vídeo que já tem quase um milhão de visualizações.

Não é de hoje que as obras clássicas da literatura brasileira conquistam admiradores ao redor do mundo. O próprio Machado de Assis já havia sido “descoberto” pelo cineasta norte-americano Woody Allen, que incluiu Memórias Póstumas de Brás Cubas em sua lista dos cinco melhores livros de todos os tempos. E o escritor e crítico literário norte-americano Harold Bloom, elencou Machado de Assis em seu livro Gênio: Os 100 autores mais criativos da história da literatura (2002), no qual classifica o autor carioca como “uma espécie de milagre”.

Machado de Assis publicou grande parte de sua obra no século 19. Memórias Póstumas de Brás Cubas se situa na metade de sua produção literária e é considerado por estudiosos um divisor de águas na sua carreira de escritor. Em seu vídeo, Novack não deixa claro o porquê de a estória ter lhe causado tamanho arrebatamento, mas é fato que permanece atual depois de 143 anos.

No livro, a vida de Brás Cubas é narrada pelo personagem-título após a sua morte. Liberto de qualquer censura ou filtro social, o “defunto-autor”, como ele se autodenomina, adentra o psicológico humano e escancara a hipocrisia dele mesmo e da sociedade e aponta os erros, os próprios e os dos outros. Utilizando-se da acidez, do humor, do sarcasmo e da ironia ele provoca riso, desprezo, repulsa. “É um romance cheio de ironias, para botar o dedo na ferida social”, descreve a professora do Departamento de Letras da UEL (Universidade Estadual de Londrina) Suely Leite.

Ao relembrar a tentativa frustrada de seu pai de fazer do filho um político de sucesso, Brás Cubas deixa evidente a sua falta de objetivos de vida e um enorme vazio existencial. “A geração de hoje está muito voltada a essa questão, de atender às expectativas dos pais em relação à profissão”, comentou a professora.

Em determinado momento da vida, o personagem dedica-se à invenção do “Emplastro Brás Cubas”, que lhe garantiria “a glória entre os homens”. Embora o medicamento tivesse como finalidade a cura física, Leite vê no empenho do narrador pelo sucesso na empreitada uma metáfora da busca pela cicatrização de suas feridas emocionais. “Ele não conseguiu a cura física e nem a emocional. O emplastro não deu certo.”

“Você consegue ter uma empatia pelo narrador, mas também o despreza por algumas falas dele. Ele desperta o riso porque também é patético, mas é humano e isso vai mexer com a gente. Ninguém passa imune a Memórias Póstumas”, afirmou a professora.

O também professor do Departamento de Letras da UEL com um trabalho de pós-doutorado totalmente dedicado a Machado de Assis, Gustavo Ramos de Souza concorda que o fato de se manter atual depois de quase um século e meio de sua publicação é um dos motivos que cativam os leitores. “Ele provoca muito o leitor, quer seja pelo humor ou pela ironia machadiana, e faz uma profunda reflexão. Fala de uma sociedade regida pelas aparências, o que tem muito a ver com o que acontece hoje, nas redes sociais. Ele fala de como somos percebidos pelos outros. É um grande tema contemporâneo.”

Souza ressaltou que o livro, quando lançado, foi alvo de algumas críticas desfavoráveis. “Na Inglaterra, esse tipo de romance já era desenvolvido desde o século 18, mas aqui houve muito estranhamento. Não eram as convenções do romance brasileiro.” Mas mesmo entre as obras de Machado de Assis, disse o professor, o estilo de escrita já havia sido apresentado nas Histórias da Meia-Noite, uma coletânea de contos publicada em 1873, quase dez anos antes de Memórias Póstumas.

“O que facilita a recepção do Machado de Assis é a sua profunda modernidade e, em segundo lugar, é que é diferente de autores mais herméticos, como Guimarães Rosa. Ele se apresenta de forma mais transparente, ao mesmo tempo que utiliza de experimentalismos. É uma pena que só passe a ser valorizado após uma validação vinda do estrangeiro”, disse Souza.

Em seu vídeo viral, além de lamentar a demora em conhecer o livro de Machado de Assis, Novack lança uma pergunta aos seus seguidores: “O que vou fazer do resto da minha vida depois que terminá-lo?” A dica é seguir com Machado de Assis e se embrenhar na leitura de Dom Casmurro, Quincas Borba, A Cartomante e O Espelho, todos com tradução para a língua inglesa, ou garimpar outros tesouros nacionais, como Jorge Amado. E se a escritora norte-americana tiver disposição para mergulhar ainda mais fundo na tão rica cultura brasileira, vale a pena aprender o português para ter o privilégio de ler Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, na versão original.