O funeral mais fashion do século aconteceu em Paris. Jean Paul Gaultier morreu, aos 67 anos, na última quinta-feira (23), pelo menos para a moda, legando à história um último olhar sobre seu passado de sutiãs cônicos, listras navy e corpos expostos em passarelas que, hoje, fariam corar as bochechas mais moderninhas do Instagram.

"Dor e glória", como no filme homônimo de seu maior parceiro no cinema, o espanhol Pedro Almodóvar, definiu o cortejo fúnebre armado no Théâtre du Châtelet.

Apelidado de "criança terrível" desde o início de suas cinco décadas de tesoura, muito por ela ter desvirtuado o conceito de elegância e embaralhado gêneros, ele se despediu de vez das passarelas após ter largado os desfiles de "prêt-à-porter", mais comerciais, em 2014.

A performance de alta-costura atravessou décadas de roupas polêmicas, entrelaçando os mamilos em riste da turnê "Blonde Ambition", da Madonna, na década de 1990, e as mini roupinhas de marinheiro que cobriram músculos masculinos no desfile "Homem Objeto", da primavera 1984, -uma estética selo da cultura LGBT, potencializada à época pelo erotismo pulsante dos marinheiros criados pela dupla de fotógrafos Pierre et Gilles.

O velório começou a caráter, com uma modelo saindo de um caixão enquanto o lamento de Boy George musicava os versos "nós apenas dizemos adeus com palavras" e "eu morri cem vezes", da música "Back To Black", de Amy Winehouse, numa quase cópia da arte cemiterial de Paulo Bruscky gestada a partir de 1971.

Da mesma forma que o artista pernambucano simulou o próprio velório, convidando estranhos a contemplar seu corpo morto, ainda que vivo, para tratar da morte da arte, Gaultier chamou a elite fashion para aplaudir, sem ela saber, a putrefação da moda de seu tempo. Para além da retrospectiva, fez um golpe de imagem típico de sua biografia.

No fim das contas, dizia-se na miúda, ele havia se tornado espécie de morto-vivo da indústria.

Ainda que seu nome circule incólume em latas e frascos de perfumes exitosos em formato de torsos, produzidos pelo grupo espanhol Puig, que comprou sua marca, alma e nome, em 2011, seus tecidos haviam saído do radar da crítica especializada.

Licenciamentos com marcas de água, pelúcia e camisetas "hype" seguraram a mítica. Mas quando cifras passaram a engolir os sonhos da moda performática e estrelas a se preocupar com memes, os ternos rasgados compostos com lingerie, as fendas desconcertantes e os corsets perderam espaço para looks de princesa da Disney.

A última vez que uma atriz subiu ao palco do Oscar para receber um prêmio trajada de Gaultier foi há 12 anos, quando a também francesa Marion Cotillard usou um vestido longo do estilista para levar a estatueta pela performance em "Piaf - Um Hino ao Amor" (2007).

Soa fato aleatório, mas para alguém a quem o cinema deve imagens eternas pode ser lido como esnobada tão monumental quanto o figurino fetichista de Andrea Caracortada, em "Kika" (1994), de Almodóvar, ou o sexy distópico visto em "O Quinto Elemento" (1997), de Luc Besson. Apenas duas das incontáveis colaborações do designer com as telas.

Das 100 vezes que Gaultier morreu, como dito no prólogo desse primeiro desfile obituário da história, algumas provavelmente foram consumadas quando alguém perguntou, ao ver seus desfiles, se "alguém usaria isso".

A frase, que sempre questiona as ideias mirabolantes de um estilista na passarela e apequena sua função como vetor de cultura, enterrou toda uma geração contemporânea ao designer.

Como um de seus maiores concorrentes, o "papa do fetiche" Thierry Mugler, que já disse ao jornal Folha de S.Paulo ter largado a moda exatamente pela uniformização do gosto e a falta de fascínio pelo "status quo" da moda.

Hoje, assim como Gaultier fará a partir de agora, Mugler dedica seu tempo a figurinos para popstars, espetáculos e, claro, seus perfumes.

A imagem da morte festiva vista na passarela que pôs a bailarina burlesca Dita Von Teese no mesmo plano da trasexual brasileira Valentina Sampaio foi pensada há anos. Na última vez que o estilista falou a este repórter, há pouco menos de cinco anos, o assunto surgiu para justificar sua partida do "prêt-à-porter", que já programava a longa despedida.

"Salvo em situações trágicas, as pessoas se deixam levar pela morte", divagou, citando ainda o fato de as pessoas "estarem mais conservadoras". E a julgar pela celeuma em torno de religiões, gêneros e ideologias, elas continuam.

Assumidamente católico, seus desfiles com imagens de Jesus e Maria estampados em roupas sexy, por vezes adornados com coroas de espinhos, e o desfile de 1993, no qual ele refez os trajes típicos dos judeus hassídicos, talvez ecoassem como coquetéis molotov na porta dos fundos do conservadorismo.

Uma boneca inflável passeou pelo derradeiro desfile em Paris resumindo o que virou todo o sexo safado, agora mais profano do que nunca, construído por meio de sua cultura de moda desde os tempos em que começou como assistente do lendário Pierre Cardin.

O estilista era mais um na plateia da qual fizeram parte outros ícones da moda como o diretor criativo da Louis Vuitton, Nicolas Ghesquière, a modelo Eva Herzigova e o recluso e "infotografável" designer belga Martin Margiela.

Carregado vivo no final do obituário por parceiras de longa data, como a almodovariana atriz Rossy de Palma e a sorridente modelo Yasmin LeBon, o Jean Paul Gaultier estilista (1970-2020) contradisse a si mesmo e se deixou levar pela morte.

Fictícia, mas palpável como prova do estado terminal da fantasia de liberdade criada no século 20.