Valter Hugo Mãe faz saudaçao poética ao amor incondicional
Em seu novo romance, “Deus na Escuridão”, o escritor português eleva o amor de mãe e de irmão à categoria divina
PUBLICAÇÃO
quarta-feira, 05 de junho de 2024
Em seu novo romance, “Deus na Escuridão”, o escritor português eleva o amor de mãe e de irmão à categoria divina
Marcos Losnak/ Especial para a Folha
“Todos deveríamos amar como amam as mães, que julgo ser como Deus ama.” Esta frase do escritor português Valter Hugo Mãe pode ser considerada a síntese de seu novo romance: “Deus na Escuridão”. Lançado pela editora Biblioteca Azul, a obra é uma saudação poética ao amor fraternal e a todas as formas do amor incondicional.
“Deus na Escuridão” narra a história de dois irmãos que habitam, com os pais, a Ilha da Madeira. O mais velho, chamado Felicíssimo, possui nove anos quando o irmão mais novo nasce. A expectativa acalentada em ter um irmão, associada à condição em que o irmão nasce, faz com que Felicíssimo desenvolva um amor incondicional. Uma irmandade que assume o amor maternal.
O irmão mais novo recebe o nome de Serafim. E o carinhoso apelido de Pouquinho por ter nascido “sem as origens”. Ou “sem as vergonhas”. Nascido sem os órgãos genitais, o menino passa a ser considerado um anjo, um santo. Rapidamente Pouquinho se torna objeto de curiosidade pelos habitantes da ilha, fator que leva Felicíssimo a multiplicar seu amor maternal, cuidados e proteção para com o irmão. Felicíssimo promove a junção do amor de irmandade com o amor maternal em uma só afetividade.
“Deus na Escuridão” é narrado pela voz de Felicíssimo. Imerso em uma realidade dura, pobre, seca e árida, o personagem transforma qualquer realidade ou acontecimento em sensações simbólicas ou carregadas de simbolismo. Uma linguagem característica da literatura de Valter Hugo Mãe e o consagrou como uma das grandes vozes da literatura portuguesa contemporânea.
OPÇÃO DE SOBREVIVÊNCIA
Para o personagem, o amor é uma opção de sobrevivência diante da falta de perspectiva social e aridez ambiental: “Amamos mais o que vemos em perigo. Amamos mais quem vemos em perigo. Somos feitos para aumentar o coração perante a família que sofre. Por vezes, nem tripas levamos dentro, nem estômago ou rins. Somos tão ocupados por amar alguém que nenhuma função que desempenhamos senão a função de amar, e todo nosso interior é o coração dilatado, esforçado como um touro jovem que se disfarça em nosso aspecto mais frágil.”
O ambiente insular possui papel determinante tanto na história narrada quanto na forma em que ela é narrada. Um ambiente de encostas íngremes, terreno pedregoso e abismos por toda parte. No posfácio que integra o livro, Hugo Mãe explica: “As ilhas geram uma supervizinhança, uma espécie de companhia em dobro que reitera as presenças de modo que pode ser sufocante. Sobreviver à ilha é também apartar quanto se possa o que está próximo, porque tudo está demasiadamente próximo e é fundamental que algo não seja tão familiar assim, não seja do nosso jeito, não nos responsabilize, não nos culpe. Julgo que minha obstinação por ilhas tem a ver com tentativas vãs de lidar com a insanável, essencial, solidão. Que tanto parece acentuar-se no sentimento do ilhéu quanto também é culpada por intensificar o vizinho, criando em cada presença uma relevância que facilmente se torna intrusiva.”
AMOR DIVINO
Em “Deus na Escuridão” o personagem principal cria uma analogia entre o amor materno e o amor divino. E coloca as mães e Deus com as mesmas inquietações diante do objeto amado: “Deus é exactamente como são as mães, que criam e depois vão ficando para trás, à distância, numa distância que parece significar que não são mais precisas, e Ele, como elas, só sabe amar acima de qualquer defeito e qualquer falha, com cada vez mais saudade, mas não sabe o caminho, não sabe por onde os filhos foram, só pode suplicar que não se percam e não se percam da vontade de voltar.”
E prossegue: “Deus está na escuridão, e tacteia por toda parte na vontade intensa de um toque, do aconchego do corpo dos filhos, um gentil toque ou abraço. E os filhos distraem-se e são incautos ou tornam-se impuros e fogem, atarefados com suas paixões e incertezas, e pensam menos no que Deus pode sofrer do que no sofrimento que haverão eles de sentir pela mais pequena contrariedade. O filhos partem sem saberem que o sentido da vida é chegar à origem.”
Nascido em Angola em 1971, com poucos anos de vida Valter Hugo Mãe fixou residência com a família em Portugal. É hoje o escritor lusitano mais lido no Brasil com uma legião de fãs e admiradores. Autor de mais de 20 obras, entre elas “O Filho de Mil Homens”, “A Desumanização”, “A Máquina de Fazer Espanhóis”, “As Doenças do Brasil”, “O Remorso de Baltazar Serapião” e “O Apocalipse dos Trabalhadores”. Por sua decisão, seus livros publicados do Brasil não seguem o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa assinado em 1990. Uma postura igualmente adotada pela maioria dos escritores portugueses publicados no Brasil.
SERVIÇO:
“Deus na Escuridão”
Autor – Valter Hugo Mãe
Editora – Biblioteca Azul
Prefácio – Rodrigo Amarante e Carlos Reis
Páginas – 240
Quanto – R$ 69,90 (papel), R$ 49,90 (e-book) e R$ 69,90 (audiolivro)