UMA VIDA REESCRITA
PUBLICAÇÃO
sábado, 30 de junho de 2001
Zeca Corrêa Leite De Curitiba
As cenas iniciais do filme Central do Brasil em nada trazem a nudez do cenário em que o diretor Walter Salles Júnior se inspirou, para rodar uma das mais sensíveis obras do cinema brasileiro dos últimos tempos. Foi num presídio na Bahia, vendo uma mulher condenada a 21 anos e quatro meses de detenção, escrevendo cartas para outras presas, que o roteiro começou a surgir. Mas a cena final, com as lágrimas correndo soltas pelo rosto de Fernanda Montenegro, projeta na tela a dimensão da dor daquela detenta: reproduz os momentos da separação dos filhos quando terminava a hora da visita.
Socorro Nobre, a ex-presidiária baiana que inspirou o premiado documentário Socorro Nobre e, a seguir, Central do Brasil, estará contando sua história de desgraça e redenção hoje, às 10h30, na Livraria Arcádia, em Curitiba, inaugurando o programa Café com Trufas Um Ensaio Aberto, promovido pela livraria e a Olaria Projetos de Arte. Durante a sessão será exibido o documentário. Entrada franca.
As cartas são elementos fundamentais na vida de Socorro. Ao ler uma reportagem na revista Veja sobre Franz Krajceberg, que depois de tanto sofrimento na vida descobriu na arte uma razão para viver, a então detenta mandou-lhe uma cartinha dizendo que aquilo que ele conquistara, era um sonho a ela. Sem ter o endereço dele, colocou apenas o nome da cidade.
O escultor nem estava no Brasil; ele passava uma temporada na França e foi lá que as linhas simples de Socorro o encontraram. Também foi lá que Waltinho, o cineasta, tomou contato com a narrativa e se interessou em conhecer a missivista. A resposta do artista, acompanhada de um livro nunca chegou a ela. Devem ter ficado com as agentes do presídio, diz a ex-presidiária. Encurtando a história, depois de idas e vindas foi rodado o curta-metragem mostrando o encontro de duas vidas Krajceberg e Socorro , e alguns anos depois a liberdade.
Socorro Nobre apaixonou-se por um homem que planejou um assalto e à distância acompanhou os acontecimentos. Ocorreu um fato inesperado o assassinato da vítima e assim que foi preso, o homem denunciou-a. Foi presa por co-autoria de latrocínio. Passou pelas cadeias de Ilhéus, Itabuna e quando saiu condenação, foi para o presídio em Salvador. Daí começou a escrever as cartas para as detentas, destinadas desde parentes a juízes.
Minha vida é feita com duas histórias: tem uma antes e depois do filme, e uma antes e depois do crime. São duas histórias de vida, resume a protagonista de 47 anos. Quando conheci o Walter eu estava numa fase melhor de cadeia. Quando você entra é difícil assimilar aquilo. Digo sempre que os nove primeiros meses que passei ali foi uma gravidez cheia de entojo e muito difícil. Um dia me conscientizei que aquela era minha realidade e tinha que enfrentar de cara, lembra.
O apoio dos três filhos na época com idades de 11 a 14 anos e dos irmãos foi vital. O amor é uma palavra mágica. Ele conseguiu me resgatar do atoleiro onde eu mesmo me meti. Hoje minha vida é um sonho, diz agradecida. Mas os anos passados atrás das grades deixaram marcas. Socorro tem um projeto de vida: trabalhar com os excluídos da sociedade. Para isso está mantendo contatos com organizações humanitárias que trabalham nessa área. É preciso fazer alguma coisa de bem para essas pessoas que estão do outro lado e ninguém acredita nelas.
Outra de suas ações é responder às cartas que chegam de todo o Brasil. Minha filha às vezes quer fazer isso e digo que não, posso demorar um pouco, mas faço questão de ser eu mesma a responder. Procuro passar às pessoas um pouco de esperança, de carinho, de atenção. Quanto ao filme Central do Brasil, afirma que assistiu milhões de vezes. A cena final a faz chorar todas as vezes. Sobre Fernanda Montenegro, com quem contracenou no Rio e no sertão baiano, guardou uma frase dita pela atriz, assim que se conheceram:
Olha, eu sou uma artista e você também é. Só que eu estou aprendendo com você.
Bate-papo com Socorro Nobre e exibição do documentário Socorro Nobre, de Walter Salles Júnior, na Livraria Arcádia (Rua Treze de Maio, 611), em Curitiba. Hoje, às 10h30, com entrada franca.