‘‘Por favor, me respeitem porque agora sou uma cantora interplanetária.’’ Quem afirma, em tom de brincadeira, é a cantora Beth Carvalho, para falar sobre ‘‘Samba de Marte’’, uma das músicas de destaque do seu 24º disco - ‘‘Pérolas do Samba’’ - em que comemora 30 anos de carreira. Composto por Arlindo Cruz, Almir Guineto, Sombrinha e Mazinho Xerife, o samba é uma referência ao maior sucesso de Beth Carvalho, ‘‘Coisinha do Pai’’, escolhido para acordar o robô-jipe Sojourner que, ano passado, enviou fotos de Marte à Nasa.
No novo trabalho, Beth mais uma vez repetiu a fórmula dos discos anteriores. Ou seja, resgatou e revelou compositores. Ao todo, 14 faixas das quais seis inéditas. O restante são realmente pérolas do samba e suas vertentes que Beth Carvalho recriou e imprimiu personalidade. Segundo a cantora, para chegar ao repertório de ‘‘Pérolas do Brasil’’ foi necessário fazer um verdadeiro inventário que resultou num total de 400 músicas. ‘‘Claro que muitas músicas ficaram de fora porque meu arquivo é muito grande e dá para fazer milhões de discos futuros’’- explica.
Se fosse para comemorar de fato 30 anos de carreira, Beth teria que ter lançado um disco alusivo à data em 95. É que ela estreou no mundo fonográfico em 65 com um campacto simples, lançado pela antiga RCA, cantando bossa nova - a faixa de destaque era ‘‘Por quem Morreu de Amor’’, de Eumir Deodato. ‘‘Mas meu marco mesmo foi em 68 com Andança’’- diz ela referindo-se à música de Danilo Caymmi, Edmundo Souto e Paulinho Tapajós classificada em terceiro lugar no 3º Festival Internacional da Canção.
Então tá! Em ‘‘Pérolas do Pagode’’, cuja produção é assinada por Renato Corrêa, Beth Carvalho se limitou a gravar apenas três de seus sucessos - ‘‘Olho por Olho’’, ‘‘Senhora Rezadeira’’ e ‘‘Ô, Isaura’’ - já que no disco ‘‘Ao Vivo no Olympia’’, de 91, registrou seus grandes marcos musicais. Preferiu regravar músicas de alguns de seus apadrinhados como Sombrinha e Arlindo Cruz, por exemplo, e lançar novos nomes como Marquinhos PQD.
O que se ouve, do começo ao fim do CD, é o autêntico samba carioca cuja principal característica está na peculiar percussão. E nesse ponto, não houve economia. ‘‘Queria muita percussão mesmo, porque assim como a axé-music, através da timbalada e Olodum, quis mostrar que o samba do Rio de Janeiro também tem uma imensa riqueza rítmica’’- explica a cantora.
Fiel às raízes do verdadeiro samba, Beth Carvalho, entretanto, não vê nada de mais nessa atual onda de pagode que usa e abusa de instrumentos eletrônicos. Ela mesma lembra que foi a primeira sambista a incluir teclado num samba (no disco ‘‘Das Bênçãos Que Virão Com os Novos Amanhãs’’, de 85), o que causou estranheza em muitos purista. ‘‘Adoro o surdo, o pandeiro e o tamborim, mas sou uma mulher aberta. Por isso não posso afirmar que nunca vá utilizar instrumentos eletrônicos. Mas se for, será de acordo com a necessidade’’- analisa.
O fato é que Beth Carvalho nunca precisou abusar de tal expediente. Sua carreira sempre foi construída de maneira coerente. Nunca aderiu a modismos. É por isso que merece os títulos que lhe são conferidos - diva do samba, rainha dos terreiros, grande senhora do samba, entre outros. Ela se esquiva elegantemente desses rótulos, mas não deixa de reconhecer que das outras duas grandes sambistas de sua geração - Clara Nunes e Alcione - é a única que não percorreu o caminho fácil do sucesso.
Por motivos óbvios. Clara Nunes morreu e Alcione, mesmo com todo o vozeirão que Deus lhe deu, acabou descambando também para os bolerões. ‘‘O samba pra mim é um modo de vida. Samba é ideológico, político, social, é a crônica do dia-a-dia. Samba é vanguarda e por isso sou uma cantora de vanguarda’’- filosofa. ‘‘Tem neguinho que não considera sambista um intérprete. É sim. Não é fácil cantar samba, não é para qualquer um. Para mim é fácil porque tenho samba nas veias’’- complementa. Quem ouve os discos de Beth sabe o quanto é verdadeira essa afirmação.Arquivo FolhaBeth Carvalho: ‘‘Samba é vanguarda e por isso sou uma cantora de vanguarda’’Antônio Mariano Júnior