ReproduçãoNatureza morta de Giorgio MorandiGiotto inventou a perspectiva apenas para que Giorgio Morandi a ‘‘desinventasse’’. Pode parecer absurdo, mas só quem nunca viu um Morandi ainda acredita em pintura ilusionista. Deixará de crer assim que colocar os pés na grande mostra dedicada ao pintor pelo Masp, em São Paulo, aberta a partir de hoje (para convidados) e amanhã (para o público em geral). É a maior exposição de um dos grandes nomes da arte contemporânea italiana, duas vezes premiado pela Bienal de São Paulo (em 1953 e 1957) e morto em Bolonha - onde nasceu e viveu - aos 74 anos.
Morandi (1890-1964) não partiu do nada para ‘‘desinventar’’ a perspectiva clássica. Ao eleger a perspectiva cúbica e vazia de De Chirico como marco zero, o italiano criou uma pintura que não pode ser considerada, segundo o crítico Giulio Carlo Argan, uma evasão ‘‘para a metafísica’’ e sim ‘‘da metafísica’’. Em outras palavras, a pintura de Morandi significaria, ainda segundo Argan, a destruição metódica da geometria euclidiana, da concepção de espaço eleita por Giotto e aceita pela tradição.
Raridades O espaço de Morandi é o espaço da consciência das coisas. Ele não pinta garrafas, potes ou vasos, que são apenas pretextos. Ele anula o objeto para que sua forma seja nivelada aos planos de cor das mesas e das paredes, igualmente suspensas numa dimensão não imediatamente reconhecível pelo espectador. Na exposição concebida pela União Latina, uma organização intergovernamental de 33 países com sede em Paris, esse espectador terá 66 pinturas, 20 gravuras, 11 aquarelas e 18 desenhos de várias épocas para conhecer, de fato, um Morandi que pouca gente viu.
O espectador brasileiro, aliás, é um privilegiado, porque países como Japão, Espanha e Suécia queriam a exposição e não foram atendidos. ‘‘São obras raras, emprestadas por tempo limitado’’, justifica Armando Uribe Echeverría, diretor-adjunto do programa cultural da União Latina, que deve trazer ao Brasil, no próximo ano, esculturas de Brancusi, depois de ter ajudado a promover a exposição das obras de Maillol na Pinacoteca do Estado de São Paulo. Além de Brancusi, Modigliani é outro nome na lista das grandes retrospectivas da União Latina.
Síntese A curadora dessa futura mostra de Modigliani é a italiana Michela Scolaro, responsável pela escolha das 115 obras de Morandi que estiveram em Paris (no Museu Maillol) até recentemente e estarão no Masp a partir de hoje. ‘‘A exposição cobre todos os períodos da produção de Morandi, da fase metafísica às telas dos anos 60’’, diz. Obras raras como as gravuras que reproduzem paisagens (ele deixou apenas 150) revelam, segundo ela, ‘‘a síntese rigorosa’’ de um mestre que fez da pintura não uma janela, mas uma parede para o mundo.
Não uma parede como a das telas de Rothko, mas ainda assim uma parede. Confinado na tela, o olho do espectador é obrigado a estabelecer relações para perceber o ‘‘ambiente’’. A linha deixa de ser limite para acentuar a ligação de ‘‘vasos comunicantes’’ tonais. Michela Scolaro, que trabalhou dois anos para reunir essas pinturas, garante que Morandi não elegeu garrafas e potes por amar esses objetos cotidianos, mas justamente por serem banais. ‘‘Eles são realmente pretextos, servindo apenas de veículo para a pintura’’, analisa. De fato, essas garrafas, não atraindo atenção especial, despertam no espectador outro interesse cognoscitivo, o da percepção de um espaço concreto criado pela pintura. E Morandi foi a expressão máxima desse poder.