Nesta parte ocidental do mundo, temos a necessária sorte de assistir, até com certa frequência, um cinema socialmente consciente, como por exemplo o do veterano e resistente cineasta britânico Ken Loach. Na mesma linhagem que privilegia o social, “Eu Não Sou uma Bruxa”, drama de estreia de Rungano Nyoni – africana nascida em Zâmbia e com formação em cinema na Inglaterra – é uma verdadeira ousadia saída do terceiro mundo, uma original e surpreendente fantasia cinematográfica, que funciona bem, e na mesma medida, como curiosidade antropológica, drama envolvente e cativante, alegoria feminista com uma moral definida, sátira política e uma inquietante advertência contra a xenofobia, o preconceito e o conformismo.

Shula (Margaret Mulubwa) mostra a realidade de mulheres africanas que são presas por bruxaria e tem até mesmo o rosto pintado para fazer selfies de turistas
Shula (Margaret Mulubwa) mostra a realidade de mulheres africanas que são presas por bruxaria e tem até mesmo o rosto pintado para fazer selfies de turistas | Foto: Divulgação

Como reconhecimento dessas qualidades, o filme foi considerado uma das revelações em 2018, e Nyoni recebeu o BAFTA inglês como melhor diretora estreante.

Este filme fascinante, em cartaz em Londrina, começa com acusações ridículas contra uma menina órfã de oito anos, Shula (interpretada pela notável Margaret Mulubwa). Um vizinho a denuncia por envenenar o poço local; outro alega que a garota cortou seu braço com um machado (não importa se o referido membro permaneça no mesmo lugar, preso ao corpo). A esses pretextos, Shula é acusada pela polícia, que determina que ela vá viver num campo de bruxas. Mas antes, o policial local deixa que ela lucre com seus “presentes”...

Shula e outras mulheres, marginalizadas e condenadas pelo mesmo crime de “bruxaria”, tiveram que enfrentar uma questão: viver como escravas do governo, amarradas a uma fita branca e sem liberdade pelo resto da vida, ou fazer frente à submissão? Em outras palavras, a cineasta Rungano Nyoni quer saber das mulheres de seu país (e do resto do mundo...) se é melhor viver como cabras soltas e livres ou como mulheres amarradas.

Neste século 21, agora mesmo, nesse exato momento, existem “comunidades de bruxas” em grandes áreas rurais do continente africano, onde as mulheres são colocadas – como se vê no filme – com rostos pintados e uniformes disponíveis para fotos e selfies de turistas.

Nyoni, zambiana de 37 anos, destaca, em viés estilístico ousado (quase um herdeira digna do realismo mágico) e com olhar irônico, o absurdo dessas tradições através da expressão imperturbável de Shula, testemunha muda de seu próprio destino. Com semblante entre cansado e resignado, a menina se torna uma celebridade, já que as autoridades convencem a todos que ela tanto pode atrair chuva como achar culpados de um crime só de olhar para eles. Isto numa sociedade hipócrita, que acusa as mulheres de prazer e depois as usam em proveito próprio.

É impossível não perceber interpretações que extrapolam o particular desta realidade crua transformada em ficção. Pois são essas as opções que se oferecem às mulheres amarradas todos os dias em todos os continentes: se adaptar às injustiças, preconceitos e desigualdades de gênero – vivendo em comunidades de “bruxas” – ou se rebelar quando elas se descobrem seres marginalizados, buscando em várias frentes conquistar o status de cabras livres e soltas. A partir desse ponto de vista meio surrealista que é a caça às bruxas contemporânea, existe uma determinação extracinematográfica de refletir sobre a posição das mulheres no mundo, e isto é algo que a jovem cineasta africana não esconde, aliás incentiva. O filme dela, além de útil para muitos debates, pode e deve provocar também a diversidade de leituras.