Nelson Sato
de Londrina
Ele é o mestre de todos, o inventor da famosa batida que rodou o mundo. Sem o violão de João, já se disse, não haveria Bossa Nova. É a inovação rítmica introduzida por ele na música popular brasileira que recebe agora sua mais meticulosa análise.
‘‘Bim Bom – A contradição sem conflitos de João Gilberto’’, que acaba de sair dos fornos da editora Paz e Terra, é quase um livro para músicos e especialistas não fosse o tratamento ágil conferido ao texto pelo autor Walter Garcia.
‘‘Bim Bom’’, título-homônimo de uma canção de João investigada ao longo das páginas, foi gestado originalmente há dois anos como uma dissertação de mestrado na área de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
A publicação exigiu pequenas alterações, mas nada que comprometesse o conteúdo do trabalho. No texto de apresentação, Caetano Veloso diz que ‘‘o senso de proporção do autor se expõe de modo tão lúcido que suas descrições técnicas e conclusões interpretativas iluminam, superando todos os esforços dos que o antecederam na tarefa de explicar-nos como e por que a arte de João Gilberto é o xis do problema’’. Palavras de discípulo.
Walter Garcia disseca a batida do violão de João, vasculha as gravações do artista, expõe suas influências, mostra a evolução de seu ritmo, especula sobre os que o antecederam, investiga seu jeito contido de cantar, aborda sua relação com as platéias e ainda reúne depoimentos de músicos que acompanharam de perto sua intervenção nos já distantes anos 50.
As primeiras linhas são dedicadas à crônica da aparição da batida paradigmática de João. ‘‘Conta-se’’ – escreve ele – ‘‘que após receber sua visita e ouvi-lo pela primeira vez, Roberto Menescal saiu com o baiano para apresentá-lo a amigos, como Ronaldo Bôscoli e Nara Leão. Acabaram peregrinando por quase dois dias, sem pausas. Durante esse tempo, Menescal não tirava os olhos das mãos de João Gilberto. Particularmente da mão direita’’.
Tom Jobim também ficou impressionado. Em 1957, após reencontrar o amigo, perguntou: ‘‘O que é isso João?’. ‘‘Tirei dos requebros das lavadeiras de Juazeiro’’, disse o interlocutor, dando uma resposta que repetiria muitas vezes em entrevistas. Walter Garcia observa que antes de João Gilberto imprimir sua marca havia ‘‘uma boa quantidade de experiências mas, até que se sintetize a batida, faz-se no máximo um samba-canção moderno – sofisticado, despojado, inovador – e a produção, ao fim, não deixa de ser samba-canção’’.
‘‘Bim Bom’’ lembra mais uma vez que a partir do artista desenvolve-se um ‘‘pensamento musical’’ na seara da música popular brasileira, ‘‘capaz de transformar em ato diversas potências que vinham se disseminando ao longo da história da nossa canção’’. Relata assim como Caetano Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil, Roberto Carlos, Gal Costa e Jorge Benjor foram um a um sendo arrebatados pelo violão de João.
Em outro momento, o autor afia sua pinça examinando todo o contexto musical que antecedeu a batida analisando gravações brasileiras significativas do período pré-bossa nova que também destacaram a marcação de baixo (o elemento musical, não o instrumento) escolhida pelo artista e que já era ouvida no samba-canção tradicional, no acompanhamento de violão para o samba-canção moderno dos anos 50 e ainda em alguns sambas de inspiração jazzística dos anos 30.
Mais adiante, o foco se dirige para outras influências formadoras da batida, destacando o tamborim da escola de samba e o piano do samba jazzificado (executado por Johnny Alf e João Donato). A abordagem técnica avança discutindo outros tópicos como as células rítmicas criadas por João Gilberto e o princípio que rege seus ataques de acordes e de que modo ocorre sua articulação com o princípio de regularidade do baixo.
O conhecido personalismo (ou perfeccionismo) do cantor é objeto de outro capítulo, que examina sua relação com os músicos durante as gravações de seus primeiros discos, além de analisar seu comportamento e o das platéias durante os shows. Completam o volume textos sobre o canto intimista, o jogo rítmico entre a voz e o violão, os vínculos da bossa nova com Noel Rosa e as origens da síncope na música popular brasileira.
‘‘Bim Bom’’ tenta identificar e explicar os traços musicais que se transformaram em símbolos do refinamento estético brasileiro. É uma obra exaustiva, árida em algumas passagens e estimulante em outras. Chega ao público antecedendo a ‘‘João Voz e Violão’’, o novo disco do artista, já gravado e pronto para ser lançado.‘Bim Bom’, de Walter Garcia, traz uma análise minuciosa da contribuição musical de João Gilberto para a canção popular brasileira
Arquivo FolhaJoão Gilberto: batida teria sido inspirada nos requebros das lavadeiras de Juazeiro, que passavam equilibrando trouxas na cabeçaReproduçãoLivro elucida as bases técnicas que marcaram o surgimento da famosa batida da bossa nova