Uma longa amizade vai por água abaixo neste emocionante filme do inglês Martin McDonagh, com Colin Farrell e Brendan Gleeson, a mesma dupla afiada que brilhou na estreia do diretor em 2008, “Na Mira do Chefe/In Bruges”, sua primeira comédia dramática e território onde se movimenta cada vez com maior desenvoltura – com certeza estão lembrados de seu segundo opus, “Três Anúncios para um Crime”, que colheu uma cesta de prêmios na temporada 2018.

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Às vezes é quase estranho (e assustador) rir durante um filme de McDonagh. Suas histórias são hilárias, com citações memoráveis, mas profundamente tristes. É difícil explicar como funciona, mas funciona. É como se, depois de perceber que o mundo está condenado e não há esperança, apenas nos sentássemos ali e assistíssemos, sorrindo.

O estilo pessoal de McDonagh, assim como seu humor, são tão únicos que realmente deveriam ser muito mais celebrados (embora ele já tenha se deliciado com a glória do Oscar e do Globo de Ouro, com o Batfa e o Leão de Veneza, tanto por “Three Billboards Outside Ebbing, Missouri” quanto agora por este “The Banshees of Inisherin”, que vem assombrando o já ganhou da pirueta pop “Tudo em Todo Lugar...”

À primeira vista pode parecer um filme menor, tanto em propósito quanto em espírito, no qual a pequena comunidade de uma ilha (fictícia) na costa da Irlanda experimenta repentinamente algo surpreendente e emocionante: o fim de uma longa amizade entre dois homens habitantes do lugar. Acontece tão abruptamente que é devastador, especialmente para Pádraic (Colin Farrell), um homem de bom coração que aparentemente também é muito chato, desinteressante e agora intolerável para seu melhor amigo.

Na verdade, é assim que tudo começa, com as palavras: "Eu simplesmente não gosto mais de você". É infantil, é estranho. Mas o sexagenário Colm (Brendan Gleeson) já se decidiu. Ele sente sua vida escorregando por entre os dedos, então se recusa a ouvir mais, todos os dias as mesmas litanias sobre cocô de burro (ou o pet de Pádraic é um pônei?). Assim, Colm decidiu terminar o relacionamento com seu amigo mais jovem que ele, que o segue apesar de tudo, reagindo com sorrisos tímidos ou explosões de raiva etilizada. Com isso, o dissidente e refinado Colm, também um violinista amador, ameaça literalmente cortar todos os seus dedos se Pádraic não o deixar em paz.

Nas mãos de outro diretor (e um diretor não formatado pelo “irish touch”), o filme poderia ter sido apenas uma boa história porque inusitada. Mas o McDonagh dramaturgo sempre consegue trazer fraqueza humana, crueldade e, é claro, violência gráfica em tudo o que foi por ele escrito e criado em imagens. Por isso, enquanto as pessoas do vilarejo observam, entre indiferentes, divertidos e assustados, esses dois homens continuam se machucando. Na alma e no corpo.

O isolamento e o ócio despertam traços de insanidade em todos, não apenas nos dois protagonistas. Há uma velha assustadora vagando pelos caminhos da noite, como se uma das três bruxas de Macbeth tivesse se perdido; há a irmã de Pádraic (Kerry Condon), esperta demais para ser feliz neste lugar estranho, e ainda uma espécie de louco do lugar, algo também shakespeariano. O superpoder de McDonagh é conseguir acumular dor e solidão para construir algo caloroso, comovente e com frequência engraçado.

Há algo profundamente pessoal em alguns dos temas abordados no filme, como a crueldade da passagem do tempo e o legado que queremos deixar para trás. Colm começa a se perguntar o que é mais importante na vida: a arte, o trabalho ou apenas o dia a dia de amabilidades uns com os outros ? Vale a pena sacrificar tudo na esperança de ser lembrado séculos depois ? Essas questões são tratadas com cuidado e linguagem deliciosamente bem esculpida por dois atores que parecem aproveitar cada segundo dos confrontos trágicos de seus personagens, deleitando-se no diálogo e deixando absolutamente tudo fluir. Colin Farrell e Brendan Gleeson são uma dupla maravilhosa, embora tudo o que um deles faça seja tentar escapar da mesmice, eventualmente bebendo cerveja (Guinness, com certeza) do lado de fora do pub.

Alguém já disse que o fim de uma amizade dói mais do que o fim de um relacionamento amoroso. Então, provavelmente é a mesma coisa. E esse filme é uma perversa, maldita história de amor. Veja, reflita e depois conclua se, entre outras coisas,

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