No início do século 20, a recém instituída República do Brasil entregou ao capitão do exército José Ozório a missão de “contatar” os indígenas kaingang que habitavam a região sudoeste do Paraná. Entre os integrantes da expedição estava um bugreiro alemão com vasto currículo como “caçador de índio”. O objetivo era abrir terreno para a colonização do interior do estado, abrir espaço para fazendas e cidades.

Mais de 100 anos depois, o escritor paranaense Jr. Bellé fez uma descoberta inesperada. Uma verdade desconhecida: sua bisavó era uma das meninas kaingang que foram caçadas e estupradas pelo bugreiro europeu da expedição do capitão José Ozório.

O escritor transformou a descoberta no livro “Retorno ao Ventre” lançado pela editora Elefante. A obra resgata a trajetória oculta da família e o processo de silenciamento dos povos nativos do Paraná. A obra recebeu edição bilíngue português-kaingang com tradução de André Luis Caetano e venceu o Prêmio Cidade de Belo Horizonte.

“Retorno ao Ventre” traz um relato poético contundente e carregado de originalidade. Uma narrativa que mistura poesia, memória, história, pesquisa documental e ficção para retratar o silenciamento da herança indígena na cultura nacional. Tanto no apagamento promovido pelo Estado, quanto no emudecimento alimentado no seio das famílias descendentes de imigrantes europeus.

Nascido em Francisco Beltrão, Jr. Bellé é autor de “Trato de Levante” (Patuá, 2014), “Amorte Chama Semhora” (Patuá, 2017) e “Mesmo Sem Saber Pra Onde” (Folheando, 2022). A seguir, o autor fala sobre a descoberta das origens e como o racismo está impregnado no seio da família, da sociedade e da nação.

Em “Retorno ao Ventre” você resgata a história de sua bisavó kaingang que viveu na região sudoeste do Paraná no começo do século 20. Como você descobriu essa história?

Embora ela estivesse debaixo do meu nariz, foi completamente por acaso. Trabalho como curador de literatura no Sesc Av. Paulista, e estava desenvolvendo uma programação com nomes da literatura indígena quando recebi uma ligação de minha tia Pedrolina. Ao contar a ela sobre o trabalho, tia Pedrolina me disse que nossa família também tinha origens indígenas: além de um bisavô guarani, havia uma bisavó, pega no laço ainda pequena, sobre a qual ela não tinha muitas informações, sequer sabia o povo de origem. Esse vazio de informações só fez crescer quando decidi ir atrás da história dessa ancestral: trata-se de um vazio proposital, construído pelo Estado justamente para ocultar o legado indígena. Esse vazio se tornou um personagem do livro: o Alzheimer da tia Pedrolina. Transformada em protagonista, ela era a última detentora da memória originária da família. O Alzheimer é uma manifestação do apagamento intencional dessa herança indígena.

“Retorno ao Ventre” traz uma narrativa que revela a brutalidade dos colonizadores contra os povos nativos: um europeu chega ao Brasil, caça na mata uma menina kaingang e comete abuso sexual. Esse seria um caso que retrata a história do país?

Com certeza. Aquela história bonita do Brasil ser o resultado da mestiçagem entre brancos, pretos e indígenas é real, a parte que Gilberto Freyre não contou, e que até hoje tenta ser ocultada, é que essa mestiçagem aconteceu, em grande medida, através do sequestro e estupro de mulheres e meninas pretas e indígenas. Essa é a história da minha família, e provavelmente da sua, você só não sabe disso, ou nunca se interessou em saber. No Paraná há ainda uma camada extra: o legado preto e indígena, vindo do tronco materno, sofre constantemente uma tentativa de apagamento da sua importância na constituição étnica e cultural da nossa terra. Ou melhor, da terra indígena, porque o Paraná é terra indígena, é terra Kaingang, Mbyá, Xokleng, Kayowá e Xetá.

O livro realiza uma simbólica viagem de retorno às origens. O que esse retorno significa?

Quando falo sobre um “retorno ao ventre”, que é o título do livro, me refiro a duas coisas. A primeira é o ventre materno, daquela mulher indígena cujo tronco, a linhagem, é emblema de resistência, e que muitos – em especial o Estado, mas também uma porção de colonos, ruralistas, racistas e eugenistas – adoraria extinguir, tornar uma peça de museu, o adereço de uma ancestralidade distante. A segunda é o ventre da terra – terra aqui entendida como território, o sangue e o solo, cujo ventre abriga uma história milenar, aquece as sementes e nutre as raízes, abraça os cadáveres e aconchega as almas. A terra como uma parente, uma ancestral, parte imprescindível da cosmologia dos povos que vivem desde tempos imemoriais nesse lugar que hoje chamamos de Paraná.

Geralmente os brasileiros possuem orgulho em dizer que são descendentes de europeus. Ao mesmo tempo, omitem que também são descendentes de indígenas. O que isso representa?

Representa ignorância e um sintoma latente de uma doença que assola o país, mas que se manifesta de forma muito mais violenta na região Sul: o racismo. E ele traz consequências profundas em áreas que muita gente sequer consegue conceber. Um exemplo é o campo cultural: o Paraná é irrelevante em termos culturais. O poeta Paulo Leminski tinha uma tese para explicar isso – a “mística imigrante do trabalho” – que dizia que, por ter sido erigido por imigrantes pobres, que precisavam trabalhar de sol a sol e economizar, o Paraná desaprendeu a beleza do excesso, e só por excesso se cria, por exuberância. Eu concordo em partes, mas acrescento: enquanto o Paraná não se reconciliar, enquanto não respeitar, admirar, resgatar e exaltar suas origens indígenas, pretas e caboclas – de onde a cultura popular, as festas, as cores e belezas nascem – continuará sendo um estado culturalmente irrelevante.

“Retorno ao Ventre” é uma obra literária repleta de originalidade. É uma narrativa que mistura poesia, pesquisa documental, ficção, memória e história. Como ela foi pensada?

Minha ideia foi comungar poesia – ou seja, linguagem assanhada de radicalidade ao máximo grau possível – com uma história sensível e relevante, narrada de maneira potente. É claro que o tema do livro exige um tratamento respeitoso e sério, por isso passei quatro anos pesquisando em museus e arquivos, como o Museu dos Povos Indígenas e a Biblioteca Nacional, para encontrar documentação que sustentasse historicamente o enredo. Ao mesmo tempo, fui costurando isso com leitura de livros e conversas com familiares e com representantes do povo kaingang. Depois ainda trabalhamos por mais um ano traduzindo todos os poemas para o kaingang, trabalho feito pelo meu amigo e professor André Caetano, liderança da Terra Indígena Serrinha, no Rio Grande do Sul. A gente se reunia duas vezes por semana, de forma online, para encontrar os melhores caminhos de tradução. Afinal essa história precisava ser contada também no idioma da terra.

O livro revela uma tradição pouco conhecida: os kaingang do Paraná construíam cabanas subterrâneas sob florestas de araucárias. Como era essa tradição?

Não eram exatamente cabanas, seu refinamento as aproxima mais de casas, que podiam ser de diferentes portes, e eram adornadas com cerâmicas, tinham espaço para guardar utensílios e armas, para dormir e para prender fogo com segurança. O fogo que além de aquecer ainda servia para sapecar o pinhão e esquentar a água para o mate, pois é sempre bom lembrar: o pinhão é semente e comida sagrada para os kaingang, e o mate (ou chimarrão) é bebida tradicional para muitos povos, entre eles os kaingang e os guarani. Não raro, essas casas subterrâneas eram interligadas num sistema complexo de túneis, que exibe um conhecimento invejável em engenharia e construção. É difícil dizer como essa tradição foi se transformando, e as casas foram lentamente sendo construídas acima, e não abaixo, do solo. De qualquer forma, seus registros arqueológicos contam a mais longa história da ocupação humana nessa geografia que chamamos de Paraná.

Imagem ilustrativa da imagem Um recorte da história dos kaingang: a descendência silenciada
| Foto: Divulgação

SERVIÇO:

“Retorno ao Ventre – Mynh fi Nugror to Vesikã Kãti”

Autor – Jr. Bellé

Editora – Elefante

Tradução – André Luis Caetano

Apresentação – Eliane Potiguara

Ilustração – Moara Tupinambá

Páginas – 168

Quanto – R$ 60

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