UM POETA FESTEJADO
PUBLICAÇÃO
sábado, 12 de maio de 2001
Nelson Sato De Londrina
Só efemérides para içar Murilo Mendes do ostracismo. O centenário do poeta mineiro (1901-1975), comemorado hoje, é emblemático. Não fosse a circunstância, talvez uma geração inteira de leitores ficasse privada de sua obra poética, que volta circular depois de um longo período de mofo em estantes empoeiradas.
Murilo Mendes é um dos grandes nomes do modernismo brasileiro. No final do ano passado, dois livros de ensaios anunciaram sua redenção: Murilo Mendes Ensaio Crítico, Antologia, Correspondência (editora Perspectiva), de Laís Corrêa de Araújo, e A Trama Poética de Murilo Mendes (Lacerda Editores), de Leila Maria Fonseca Barbosa e Marisa Tímponi Pereira Rodrigues.
Agora, a editora Record dá os retoques finais em um grande projeto de reedições. Vários títulos do autor estão no prelo. Poesia Liberdade (1947) e Tempo Espanhol (1959) serão lançados já durante a Bienal Internacional do Livro, a ser realizada entre os próximos dias 17 e 27 no Rio de Janeiro. Para o ano que vem, estão previstos os resgates de A Idade do Serrote (1968), Metamorfoses (1944) e Poemas (1930).
Poemas marcou a estréia literária de Murilo. Mário de Andrade o saudou como o principal lançamento do ano, superando inclusive a volumes de Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira, que também pularam das gráficas naquela fértil temporada. Não é, contudo, o livro mais elogiado de sua trajetória. Poesia Liberdade, sim, desfruta do título arrebanhando sempre mais admiradores.
Há pouco banido de livrarias e de estudos acadêmicos, Murilo Mendes ronda enfim a berlinda. Nunca foi tão festejado. Vários eventos foram preparados para homenageá-lo, entre eles a abertura neste domingo de uma exposição na Universidade Federal de Juiz de Fora (cidade natal do poeta) reunindo originais, documentos, fotos e uma coleção de pinturas de seu antigo acervo. A programação é farta. Até discurso no Congresso Nacional e lançamento de um selo comemorativo vão lembrar o poeta.
Em vida, ele não obteve a mesma atenção. Foi mais reconhecido na Europa do que no Brasil. Não por acaso, em 1972 recebeu o prêmio de poesia mais cobiçado da Itália, o Etna-Taormina, anteriormente atribuído a ilustres como Dylan Thomas, Giuseppe Ungaretti, Tristan Tzara e Jorge Guillén. Por isso, a Itália também entrou no roteiro de celebrações dos cem anos de nascimento do autor.
Brevemente será publicado por lá o livro Locchio die Poeta (O Olho do Poeta), uma compilação de textos que Murilo Mendes escreveu sobre artes plásticas incluindo aqueles publicados em catálogos de exposições de pintores locais. O volume está sendo organizado pela historiadora e crítica literária Luciana Stegagno Picchio. Entre os artistas focalizados, consta Juan Miró, que, segundo o poeta, tornou impossível a separação de poesia da pintura.
Murilo morou 18 anos em Roma, ganhando a vida como professor de Cultura Brasileira. O período foi marcado por intensa produção de textos em prosa, do memoralismo do livro A Idade do Serrote ao experimentalismo de Poliedro (1972), além dos muitos volumes mantidos inéditos e coligidos após sua morte na edição completa de Poesia Completa e Prosa que a Nova Aguilar lançou em 1994.
A poesia, no entanto, nunca foi relegada a segundo plano. Diz a lenda que ele foi picado pela iluminação dos versos ainda na infância, depois de ver a passagem do cometa Halley. Para alguns, sua obra está a merecer novas avaliações. Modernista nos primeiros passos, Murilo trilhou as pegadas de Oswald de Andrade com o recurso aos poemas-piada.
Depois abraçou o surrealismo à moda brasileira (a expressão é sua) com seu carretel de imagens desconexas, como na estrofe inicial de Metade Pássaro: A mulher do fim do mundo / Dá de comer às roseiras,/ Dá de beber às estátuas,/ Dá de sonhar aos poetas.
Mais tarde converteu-se ao catolicismo após a morte do pintor e amigo Ismael Nery. Boa parte da crítica torceu o nariz. A religiosidade que passaria então a impregnar sua poética torna-se tópico suficiente para rechaçar o autor por um suposto descuido formal condenando-o à famigerada linhagem dos poetas messiânicos conteudistas.
Meu outro eu angustiado desloca o curso dos astros, atravessa os espaços de fogo e toca a orla do manto divino escreveu ele no poema Natal. Não faltam reparos também ao anti-melodismo intencional de sua poesia, que se apresentaria áspera, dissonante e coalhada de cortes abruptos. Aqui, a acusação de hermetismo faria par ao mesmo anátema despejado à música de concerto contemporânea, como ele mesmo explicaria:
Persegui sempre mais a musicalidade que a sonoridade. Procurei muitas vezes obter o ritmo sincopado, a quebra violenta do metro, porque isso se acha de acordo com a nossa atual predisposição auditiva. Certos versos meus são os de alguém que ouviu muito Schoembeg, Stravinski, Alban Berg e o jazz. Menos lido do que Drummond, Bandeira, João Cabral ou Vinícius, Murilo ainda assim ostenta uma legião de defensores e discípulos.
Não há, afinal de contas, quem não se entusiame com o impacto visual de seus versos. Prova de que sua poesia continua em pânico.