Pouca gente tinha ouvido falar da iugoslava Olga Tokarczuk até a escritora receber o Prêmio Nobel de Literatura de 2018 – anunciado com atraso em 2019. Autora de quase 20 obras, Tokarczuk tinha apenas uma única obra em língua portuguesa, o volume de contos “Os Vagantes” publicado pela editora Tinta Negra em 2014, atualmente e encontrado apenas em sebos.

Recentemente a editora Todavia começou a publicar a obra de Olga Tokarczuk no Brasil em traduções diretamente da língua iugoslava. “Sobre os Ossos dos Mortos” é o primeiro título a chegar às livrarias. Um romance fora do convencional que envolve reflexões instigantes e inusitadas sobre a relação do homem com a natureza.

“Sobre os Ossos dos Mortos” traz a história de Janina Dusheiko, uma excêntrica senhora. Uma professora aposentada que vive isolada num pequeno vilarejo gelado. Passa os dias estudando astrologia e traduzindo versos do poeta inglês William Blake (1757 – 1827). O próprio título do romance remete ao um dos versos de Blake: “Conduz teu carro e teu arado por sobre os ossos dos mortos”.

Os problemas começam quando suas duas cachorras, fieis companheiras, desaparecem. Vagando pela região à procura dos cães, Janina descobre que existem caçadores matando ilegalmente animais selvagens. Procura de várias maneiras informar e alertar as autoridades sobre os crimes de caça, mas ninguém lhe dá atenção, consideram bobagens de uma “velha louca”.

Certo dia, um dos habitantes do vilarejo aparece morto numa estranha situação. Logo depois outro morador aparece morto em situação mais estranha ainda. Em seguida um terceiro habitante surge morto de maneira absurda e improvável.

A polícia local não tem a mínima ideia do que está acontecendo e Janina, por conta própria, resolve investigar as mortes. Primeiro descobre que todas as vítimas, supostamente assassinadas, integram um poderoso clube de caça do vilarejo. São caçadores prepotentes acima da lei. Segundo constata que em todos os locais dos crimes sempre havia sinais da presença de animais, não de humanos. Então cria uma hipótese ousada: os assassinatos são fruto da vingança dos animais selvagens. Para não serem cruelmente assassinados, começam organizadamente a matar os caçadores com igual crueldade.

Livro de Olga Tokarczuk pode ser considerado um suspense sobre os direitos dos animais
Livro de Olga Tokarczuk pode ser considerado um suspense sobre os direitos dos animais | Foto: Divulgação

“Sobre os Ossos dos Mortos” pode até parecer um romance policial, mas não é. Pode até utilizar instrumentos da narrativa policial, mas caminha para outros territórios. Revela-se um romance completamente original desprovido de convenções. Pode ser considerado um suspense sobre os direitos dos animais. Uma fábula sobre a injustiça que abate indivíduos marginalizados. Um testamento sobre as hipocrisias do poder. Um testemunho sobre como a maneira como os homens tratam a natureza diz muito mais sobre eles do que seus discursos.

A grande potência da narrativa reside no fato de Olga Tokarczuk criar uma personagem com uma visão peculiar da vida. Uma visão lúcida diante da realidade e mágica diante da própria existência. Uma visão em que a ação torna-se a única saída. Para Janina, “as pessoas são capazes de entender apenas aquilo que inventam para si mesmas e é com isso que se alimentam.” Sua compreensão é de que os humanos possuem a visão do mundo, mas os animais possuem a percepção do mundo.

Um exemplo de seu raciocínio: “Às vezes tenho a impressão de que vivemos num mundo que nós mesmos projetamos. Determinamos o que é bom e o que é ruim, desenhamos mapas de significados... E depois, durante a vida inteira, lutamos contra aquilo que concebemos. O problema é que cada um tem a sua própria versão, por isso é tão difícil as pessoas chegarem a um acordo.”

Outro exemplo: “Toda a complicada psique humana foi criada para não permitir que o ser humano entenda aquilo que vê de verdade. Para que não descubra a verdade, envolto em ilusão e conversa fiada.”

Exemplo outro: “Os animais mostram a verdade sobre um país, a atitude em relação aos animais. Se as pessoas tratarem os animais com crueldade, não adiantará de nada a democracia ou qualquer outra coisa.”

“Sobre os Ossos dos Mortos” é literatura que possui como objetivo surpreender o leitor. Olga Tokarczuk cria um jogo de elementos improváveis que ganha uma impressionante projeção. Trata-se de um romance que retira as roupas de vários estratos de poder, da prepotência ou da submissão, para revelar que tudo está nu. As ideologias estão nuas. As atrocidades estão nuas. As falsidades estão nuas. As hipocrisias estão nuas. Os interesses dissimulados estão todos nus. Basta olhar com os olhos límpidos.

Para a personagem principal, a limpidez se apresenta como a grande força capaz de apaziguar a dor e atingir a verdade: “Quando fico inquieta, imagino que tenho um zíper no ventre, do pescoço até a virilha, e o abro devagar, de cima para baixo. E depois tiro os braços dos braços, as pernas das pernas e cabeça da cabeça. Saio do meu próprio corpo, que desliza de mim como uma roupa velha. Debaixo dela, sou mais fina, delicada, quase transparente.”

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. | Foto: Reprodução

Serviço:

“Sobre os Ossos dos Mortos”

Autora – Olga Tokarczuk

Editora – Todavia

Tradução – Olga Baginska-Shinzato

Páginas – 256

Quanto – R$ 59,90