Faltando 3 dias e 7 filmes para o encerramento da mostra competitiva do 53º Festival de Cannes, o nível dos 15 longas vistos até ontem não autorizava nenhum favoritismo disparado. Se não houve maiores decepções, também a euforia passou longe do Palais.
As sessões paralelas continuam a oferecer dezenas de opções, tentadoras na maioria. Mas é impossível, salvo por dotação sobre-humana, atender a tantos e variados apelos num dia de 24 horas.
Saíram algumas resenhas críticas sobre ‘‘Eu, Tu, Eles’’, de Andrucha Waddinton. Como o filme foi exibido fora de concurso, na paralela ‘‘Um Certo Olhar’’, nem todos têm espaço editorial disponível. Mas as poucas que circularam ressaltam as qualidades da direção, a participação de Regina Casé, a fotografia pictórica e funcional de Breno Silveira e a música de Gilberto Gil. A ‘‘Variety’’ chega até a prever um futuro comercial risonho para o filme. ‘‘Estorvo’’ definitivamente é passado.
Sexto filme, sexta seleção oficial em Cannes. Raro privilégio, o que leva ao comentário, nem tão maldoso assim, de que o dinamarquês Lars von Trier seria um protegido do delegado-geral, Gilles Jacob, e que dificilmente sairia da Riviera sem um prêmio a tiracolo. Sua última e polêmica participação em concurso foi há dois anos, quando mostrou no festival um dos representantes do famoso Dogma - em síntese, uma coleção de preceitos pregando, entre outros, o retorno às fontes mais elementares do fazer cinematográfico e a eleição de uma técnica portátil e contemporânea, o videodigital.
Lars von Trier não se cansa de surpreender. Desta vez ele veio pessoalmente - outra surpresa: o medo de avião sempre foi mais forte do que a vontade de vir a Cannes - trazendo na bagagem ‘‘Dancer in the Dark’’. Em primeiro lugar, o filme não traz o selo Dogma. Ano passado ele anunciou sua retirada do movimento. E de fato não é um exemplar Dogma, não com aquele rigor conceitual com que ele e Thomas Vinterberg (‘‘Festa em Família’’) desfilaram em 1998. Em segundo lugar, ‘‘Dancer...’’ é um musical estrelado - interpretado não é cabível - pela cantora islandesa Bjork, que canta e dança ao lado de... Catherine Deneuve.
O filme é no mínimo desconcertante. A pop star Bjork aparece no papel de uma mulher com uma visão muito pessoal do sonho americano. Aliás, visão pessoal é observação trágica e irônica. A imigrante tcheca Selma Jezkova, mãe solteira de um garoto de 10 anos, trabalha numa fábrica em pequena cidade no interior dos Estados Unidos. Ela encontra conforto na paixão pela música, mais especialmente pelos grandes números cantados e coreografados nos grandes musicais de Hollywood. Mas ela tem um triste segredo. Sofre de uma doença hereditária e vai ficar cega. O filho também. A partir daí, o roteiro se encarrega de tecer um cadeia de tramas que deságuam em tragédia ainda maior.
À sua maneira, von Trier revisita e homenageia não somente a tradição dos grandes musicais, mas também o melodrama flamboyant à moda Douglas Sirk.
Na coletiva, o diretor se confessou admirador de Gene Kelly e Fred Astaire.
Queria rechear o filme com números de sapateado, mas o coreógrafo americano Vincent Paterson achou melhor não. A bela Deneuve, de certa forma uma veterana em musicais - com Jacques Demy, anos 60 -, diz que adorou trabalhar com von Trier num sistema de produção absolutamente diferente para ela, com gravação em vídeo e reduzida equipe de profissionais. E de passagem deu monumental corretivo no coleguinha de uma rede americana de TV, que perguntou sobre tensões e brigas entre ela e Bjork durante as filmagens. A ausência da cantora em Cannes reforça os rumores de desentendimentos. Ao todo foram 100 (cem) câmeras Sony PD para as sequências de dança. Por cerca de um ano, von Trier trabalhou em cima das cores para obter um resultado quase de descolorização, alguma coisa entre o sépia e o pastel. Como se vê, pelo menos para o diretor o Dogma parece que já é história.