Trecho do livro
‘‘Imagina-se que a amizade é um serviço que se presta. Mas o amigo, assim como o apaixonado, não deve esperar uma recompensa para seus sentimentos. Não tem que exigir contrapartidas por seus serviços, não deve considerar que a pessoa eleita é uma criatura fantástica, deve conhecer seus defeitos e aceitá-la como é, com todas as consequências. Isso seria o ideal. E, de fato: será que vale a pena viver, ser homem, sem um ideal desses? E se um amigo nos decepciona porque não é um amigo de verdade, será que podemos acusá-lo, jogar-lhe na cara o seu caráter, a sua fraqueza? Quanto vale uma amizade que ambiciona ser premiada? Será que não temos o dever de aceitar o amigo infiel exatamente como o amigo fiel e cheio de abnegação? Será que não é esse talvez o conteúdo mais autêntico de toda relação humana, esse altruísmo que do outro nada exige e nada espera, absolutamente nada? E que quanto mais o outro nos dá tanto menos esperamos ser recompensados? Quem dedica ao outro toda confiança da juventude e toda a abnegação da idade madura, além do dom mais precioso que uma criatura pode oferecer a seu semelhante - a fé mais apaixonada, cega e absoluta - , e se vê recompensado com a infidelidade e o abandono, tem talvez o direito de se ofender, de querer se vingar? E se o que foi traído e abandonado se ofende, se grita por vingança, era realmente um amigo? Veja, são essas as perguntas às quais me esforcei por responder quando fiquei sozinho. A solidão, é claro, não me forneceu nenhuma resposta. Tampouco os livros me responderam de forma exaustiva.’’
(Trecho do romance ‘‘As Brasas’’ de Sándor Márai, Editora Companhia das Letras)