É um fenômeno, sem dúvida. Cerca de 70 milhões de espectadores em 76 países, quinta melhor estreia no universo streaming (o selo é Netflix), prato de resistência gossip da recente e combalida ceia de Natal à base de panetone & pandemia. E isto conseguido graças a uma impressionante encenação de gala, uma trama lítero-telenovelesca (prima não muito distante dos “Cinquenta Tons de Cinza”), uma trilha sonora modernizada, sequências que geraram debates e um protagonista tão bonitão e rico quanto complexo (tornado queridinho instantâneo das redes sociais): um duque negro, solteiro e cobiçado no período regencial da corte inglesa. Corre o ano de 1813.

E os questionamentos surgiram tão logo os primeiros capítulos se sucederam. “Desde quando havia negros aristocratas naquele período?”. “O que estou assistindo é uma série histórica ou um peça de ficção que simplesmente se veste de época?” As perguntas ainda estão nas cabeças de muitos espectadores quando se lembram do Duque de Hastings (Regé-Jean Page), a rainha Charlotte da Inglaterra, também negra (Golda Rosheuvel) e dezenas de personagens secundários e extras também negros participando das festas da Corte. Para um público acostumado a ver todo tipo de espetáculos de época em que os negros – se houver, e quando estão em cena – são meros escravos, serviçais ou mordomos, “The Bridgertons” apresenta uma realidade paralela que divide os espectadores entre aqueles que aplaudem a ficção e aqueles que condenam a falta de veracidade histórica.

Mas neste caso até que ponto a ficção inventa e a História fornece dados que comprovam o que se vê na telinha ? E isso importaria de fato ?

De novo ao que já se sabe. A série nos transporta para o início do século 19, especificamente para a movimentação social em Londres, onde moças de fino trato (famílias importantes) aparecem em sociedade em busca do marido que garantirá o bem-estar material delas. Encontrar o amor fica no terreno dos sonhos. Mas nesse momento de início de temporada de caça e captura de um marido, os mexericos se multiplicam por conta de bem informada e judiciosa cronista de costumes da aristocracia londrina. Para controlar esta afiada fonte de informações, uma das candidatas, a bela Daphne, faz um pacto com o solteiro mais cobiçado da cidade, o herdeiro de Hastings. Os dois fingem um compromisso. Mas a dupla imbatível, Cupido & Eros, faz das suas de novo.

A boa química entre os dois personagens funciona, de certa forma, como uma espécie de neutralizador das estranhezas iniciais diante da miscigenação racial palaciana (cerca de três, quatro capítulos, porque a partir do quinto a temperatura de alcova atinge aqueles tais tons de cinza...). Então: se havia alguma resistência para embarcar nesta original viagem em branco-e-preto-a-cores, o público relaxou e foi levado pelo turbilhão de emoções e acertos de produção – vestuário, bela fotografia, direção de arte, cuidados nos detalhes, intrigas palacianas e outros temperos mais.

Por mais que condicionamentos e preconceitos tenham feito sua parte, no início trabalhando contra esta ideia da inclusão, a partir de sua segunda metade o público mergulha de cabeça neste universo ficcional. E o fato de haver uma rainha e um duque negros se torna absolutamente irrelevante, não fosse a produtora da série, Shonda Rimes, negra também ela, uma especialista em histórias que conseguiram captar a igualdade de maneira mais natural do que outras séries ou filmes contemporâneos.

Série  é um fenômeno que já alcançou 70 milhões de espectadores em 76 países
Série é um fenômeno que já alcançou 70 milhões de espectadores em 76 países | Foto: Netflix/ Divulgação

ARISTOCRACIA NEGRA

Mas voltando ao retrato de monarcas e aristocratas negros na trama, deve-se destacar que há detalhes que jogam a favor da série. O Período de Regência ocorreu entre 1813 e 1820, começando logo após o termino do tráfico de escravos na Inglaterra. O primeiro aristocrata negro foi uma mulher, Dido Elizabeth Belle (há um filme dramatizado sobre sua história, “Belle”, de 2013). Além disso, a ideia de que a Rainha Charlotté negra não é totalmente absurda. Muitos historiadores apontam que ela, mulher do Rei George III, poderia ter descendência africana, embora sua origem fosse alemã; há retratos (os pintores da época a teriam deixado propositalmente mais esbranquiçada...) que sugerem que a teoria é bem plausível.

E o que é inegável, decorridas algumas horas da série, a ideia de que existiam aristocratas negros fervilhando na alta sociedade britânica deixa de ser relevante. Relevante mesmo é a realidade feminina, mulheres sem independência econômica à mercê de um futuro pendurado no braço de um homem como meio de sobrevivência. Além disso, nada daquilo que vemos em cena parece real. Afinal, “Os Bridgertons” não é uma série histórica, mas um conto de fadas construído como um mundo ideal, inclusivo, sem diferenças de cor. Bom não esquecer: séries que seguem a História com rigor tem o dever (a obrigação, talvez? ) de respeitar a veracidade. Mas a série de época não, e é por isso que Bridgertons não conta uma história real, deixando a imaginação à rédea solta.