Estima-se que quando os portugueses chegaram ao Brasil havia cerca de 1.200 idiomas indígenas que eram falados pelos povos originais à época do descobrimento. A dificuldade de assimilar a linguagem dos descobridores e de outros imigrantes europeus que chegaram mais tarde gerou várias peculiaridades na fala dos brasileiros. As diferenças de pronúncia foram ampliadas com a chegada de 800 mil escravos africanos no século XVII e de uma gama quase infinita de imigrantes de todos os cantos do mundo nos séculos seguintes. Essa mistura de linguagens resultou em um país cheio de sotaques que variam conforme a região geográfica.

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. | Foto: Marco Jacobsen

“Os deslocamentos de migrantes dentro do território nacional também contribuíram para o “surgimento” ou estabelecimento de modos de fala. Em outras palavras a história da nossa nação integra a história da língua portuguesa falada no Brasil, afirma Fabiane Cristina Altino, doutora em Estudos da Linguagem, docente do Departamento de Letras Vernáculas e Clássicas da Universidade Estadual de Londrina (UEL) e Membro do Comitê Nacional do Atlas Linguístico do Brasil.

Ela destaca que uma das heranças linguísticas deixadas pelos portugueses está a troca da vogal o pela vogal u. “Como em carrU, murU, pontU, ou ainda quando suprimimos o “r” em final de verbos – como em cantá, dançá, comê. Estas características, são registradas na língua portuguesa falada no Brasil, mas também são traços do português tanto europeu quanto da língua portuguesa falada nas ex-colônias de Portugal”.

ERRE CAIPIRA

Alvo de bullying e gozações, o “R” caipira pronunciado pelos paranaenses e por moradores de vários outros estados brasileiros é fruto da adaptação dos povos indígenas. “Os pesquisadores indicam que ele surgiu do contato entre o índio e o português. Nas línguas indígenas não há R ou L e para falar a língua portuguesa, os índios "adaptaram" a sua pronúncia. Depois os bandeirantes disseminaram”, esclarece a docente.

Já o “R” carioca seria fruto de um modismo entre os portugueses que chegaram ao Rio de Janeiro em 1808 com Dom João VI. Naquela época a população da capital fluminense era de apenas 23 mil habitantes que foram fortemente influenciados pelos 15 mil patrícios que tinham o hábito de pronunciar o R no fundo da garganta, como faziam os franceses. A comitiva também foi determinante na adoção do S chiado pronunciado também em Florianópolis e em Belém.

“LEITCHI QUENTCHI"

Assim como no restante do país e igualmente existente nas outras línguas, o português falado no Paraná não é uniforme, conforme aponta a professora do Departamento de Letras Vernáculas e Clássicas da UEL. “Nosso estado configura-se como um mosaico, como bem observou a Vanderci Aguilera, autora do Atlas Linguístico do Paraná. As marcas históricas e étnicas perpassam a nossa língua e o modo como a utilizamos”, afirma Fabiane.

Como exemplo, ela cita a pronúncia denominada de caipira. “Dialeto caipira, que nada tem de pejorativo, predominante no norte do estado, que reafirma nossas raízes, nossa colonização por paulistas e por mineiros em sua maioria estendendo-se ao “r” realizado com a ponta da língua vibrando, usado com maior predomínio no sul do Paraná, que também está ligado à história do seu povoamento”, detalha ao comentar também a pronúncia da vogal e, com no clássico exemplo do “leite quente”. “Que predominou na parte sul do nosso estado e que pesquisas recentes sinalizam para uma diminuição no uso por parte dos falantes versus a utilização da vogal i na porção norte do Paraná: “leitchi quentchi”. E as diferenças ao nomear os seres, como em mexerica X mimosa; salsicha X vina”, exemplifica.

Fabiane Cristina Altino com o Atlas Linguístico do Brasil: na avaliação da pesquisadora, os sotaques  devem ser considerados patrimônio cultural
Fabiane Cristina Altino com o Atlas Linguístico do Brasil: na avaliação da pesquisadora, os sotaques devem ser considerados patrimônio cultural | Foto: Arquivo pessoal

RIQUEZA VOCABULAR

Na avaliação da docente da UEL, os sotaques brasileiros devem ser considerados um patrimônio cultural. “Os dialetos (e neles incluo os sotaques) conservam em seu bojo a história de seu povo, sua constituição, por isso acredito que possamos considerá-los patrimônio cultural. Vejo a necessidade de mais iniciativas como a do Museu da Língua Portuguesa e do Atlas Linguístico (o nacional e os regionais) no sentido de divulgação e do estabelecimento do prestígio destas variedades linguísticas”, enfatiza Fabiane.

Integrante da equipe do Atlas Linguístico do Brasil desde 1998, ela afirma que a publicação vem prestando um valoroso serviço à língua e aos falantes. "Na medida que acolhe esta diversidade, a estuda e demonstra à sociedade que sua variedade linguística tem valor, nela está sua história, sua linha do tempo. O acervo organizado pela equipe em forma de mapas e discussões sobre os temas, acena para uma língua que, por ser usada por nós, merece seu lugar na sociedade de hoje. A riqueza vocabular, as motivações, os sotaques que encontramos, demonstram que todas as variedades linguísticas precisam ser igualmente consideradas”, conclui.