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Retratada há séculos na literatura, na música, no cinema, em espetáculos teatrais - e mais recentemente em podcasts e séries de TV - a infidelidade conjugal é um assunto sempre atual, até mesmo durante a pandemia. Uma pesquisa divulgada pelo site de traições e relacionamentos extraconjugais Ashley Madison revelou que 38% dos 65 milhões de inscritos em todo o mundo admitiu ter mantido na quarentena uma rotina de encontros fora do casamento. No período em que se recomenda o isolamento social para conter o coronavírus a plataforma registrou uma média de 35 mil novos integrantes por semana, sendo mais de 4 mil somente no Brasil, país que ocupa o segundo lugar no ranking de participantes, somando mais de 12 milhões de puladores de cerca.

De acordo com o estudo realizado pelo site, ter algo para se empolgar nesse período difícil foi o principal motivo apontado pelos entrevistados para os encontros fora do casamento, com índice de 34%. Na sequência vieram a procura por uma boa distração (23%); ter com quem conversar que está passando por uma situação semelhante (14%); e ajudar a manter a sensação de normalidade (13%).

“De modo geral a insatisfação na relação parece ser a principal causa da infidelidade, sendo distribuída em parcelas como interações negativas, falta de comunicação, falta de apoio emocional, aborrecimento, falta de compromisso para com o outro”, destaca a psicóloga junguiana londrinense Sônia Lunardon Vaz.

Na avaliação dela, as motivações para a infidelidade assumem grande complexidade quando se agrega à recente evolução das tecnologias e redes sociais. “Usualmente, considera-se traição a perda de exclusividade sobre um dos parceiros na relação a dois. Essa perda de exclusividade pode se caracterizar pela traição sexual. Mas uma interação online pode vir a ser tão ressentida quanto a traição sexual, bem como a traição emocional afetiva e de cumplicidade com uma terceira pessoa”, aponta.

Sônia ressalta que, seja no formato presencial ou virtual, a maneira como a infidelidade é vista está ligada ao conceito de monogamia, estabelecido culturalmente. "Devemos lembrar que a cultura se estabelece pelo poder da razão que age como limitadora dos impulsos instintuais que vez por outra aflora e pode incontestavelmente se sobrepor à razão. No entanto, essa não é uma regra fechada em si mesma. Assim como ocorre na vida selvagem, uns são mais voltados à monogamia e outros são mais voltados à poligamia. Em suma, cada um possui o seu próprio ritmo e sensibilidade, como também a sua própria ética que vai além da moral coletiva. Lembrando mais uma vez que a razão já está sendo considerada também como um instinto”.

A psicóloga ressalta que tanto em relações monogâmicas quanto nas poligâmicas um dos maiores desafios num relacionamento está em perceber o outro como um ser independente, completo e diferenciado de si mesmo. “Sobretudo que ele ou ela não é uma extensão de si mesmo, e muito menos, o espelho de sua projeção. Essa constatação evitaria muitos mal entendidos e, principalmente, estabeleceria a excelência na comunicação e na cumplicidade resultando num relacionamento maduro, honesto e fortalecido”.

MACHISMO DOMINANTE

A cantora Dalva de Oliveira causou um escândalo na sociedade brasileira quando lançou, em 1950, a música “Errei Sim”. De autoria de Ataulfo Alves, a canção narra a história de uma mulher que trai o marido e justifica a infidelidade ao descaso sofrido por ela no casamento. Apesar dos avanços conquistados pelo movimento feminista nas últimas décadas, os casos extraconjugais praticados por mulheres ainda são vistos com um peso maior quando comparado às traições masculinas.

A psicóloga Sônia Vaz observa que que a monogamia é uma regra com pesos diferentes para homens e mulheres. “A monogamia foi instalada principalmente pela cultura cristã. Sendo que a infidelidade dos homens, em muitas das ramificações cristãs, é totalmente aceita e, por vezes, até incentivada. Contrariamente, para as mulheres a infidelidade é pecaminosa e digna da mais terrível das punições. Não apenas o Brasil, como a América Latina sofreu e sofre grande influência da cultura cristã e não precisa ser expert no assunto para verificar o quanto somos machistas. A infidelidade dos homens ainda é muito mais tolerável, inclusive pelas próprias mulheres, que acreditam que numa separação ela e sua prole sofrerão carência financeira e que os homens em breve estarão com outra mulher ao seu dispor, enquanto que ela só terá outra pessoa caso ocorra uma espécie de milagre ao qual será eternamente grata”.

PRINCÍPIO NO AMOR ROMÂNTICO

A fidelidade conjugal tem origem no que a psicologia costuma denominar como amor romântico. “Já no século XII, iniciou-se um compromisso de amor exclusivo e romântico dos homens que saiam em batalhas com as suas amadas que ficavam em casa esperando pela sua volta. Essa estratégia tinha a finalidade de fazer com que os soldados tivessem mais valentia no campo de batalha e vontade de regressar aos seus lares engrandecidos pela vitória”, esclarece a psicóloga Sônia Vaz.

Ela aponta que após a revolução industrial, o “amor romântico” tornou-se um projeto político e filosófico com o fim de estabelecer a família como a célula forte cuja finalidade seria a felicidade e a união indissolúvel. “Porque nesse momento as famílias estavam morando em cidades e não mais no campo, necessitando assim de um plano estatal e religioso para conter a nova classe burguesia que estava em ascensão colocando as paixões a serviço da comunidade e da vida pública”.

RELAÇÕES ABERTAS: UMA ALTERNATIVA VIÁVEL?

Na avaliação de Sônia Vaz, investir em uma relação aberta pode ser viável se as pessoas envolvidas tiverem a maturidade emocional necessária e já tiverem raspado de si mesmo uma boa quantidade do ranço cultural e moral coletivo que adquiriram mesmo sem saber. “Se isso ainda não aconteceu, pode se ver bastante prejudicada. A relação aberta pode trazer ao casal maior cumplicidade e maior nível de maturidade tanto sexual quanto afetiva, depende muito de como estarão vivenciando essa experiência. A comunicação e a honestidade para com aquilo que deveras sente são essenciais para que dê certo e propicie crescimento para todos os envolvidos”, destaca a psicóloga.

INSPIRAÇÕES ARTÍSTICAS: DE CAPITU À NETFLIX

Sônia Lunardon Vaz, psicóloga:
Sônia Lunardon Vaz, psicóloga: | Foto: Acervo pessoal

A infidelidade já inspirou livros, filmes, séries e músicas. “Algumas obras-primas que ganharam as telas de cinema fizeram um trabalho reflexivo sobre o tema do amor e vale a pena assistir, ler e rever. Até mesmo porque são imortais ao tratarem da complexidade humana diante do tema da infidelidade”, afirma Sônia Vaz. Entre as leituras sobre o tema indicadas por ela estão os livros “Um Amor de Swann”, de Marcel Proust; “O Amante de Lady Chatterley”, de D.H.Lawrence; “Madame Bovary”, de Gustave Flaubert; e “Dom Casmurro”, de Machado de Assis; além do filme “Mentes Perigosas”, baseado na autobiografia de LouAnne Johnson.

NA LIDERANÇA DA AUDIÊNCIA

Uma das estreias recentes da Netflix mais comentadas é a série “Sex Life”, que tem batido recorde de audiência na plataforma. Apesar de atrair um grande público com a produção mexicana de gosto duvidoso, tem sido acusada de romantizar a traição vivida pela personagem principal. A história é centrada na vida de Billie, casada há dez anos e mãe de dois filhos, a protagonista começa a ter fantasias sexuais com o ex-namorado, pois está insatisfeita com o desempenho do marido na cama. Outra série da Netflix que aborda o tema é Wanderlust. A produção britânica escrita por Nick Payne e dirigida por Luke Snellin e Lucy Tcherniak mostra o cotidiano de um casal que vive uma relação aberta.

Na música, um dos maiores exemplos da popularidade alcançada pelo tema é o sucesso da música “Infiel”, composta e interpretada por Marília Mendonça. O vídeo do hit que projetou a cantora para todo o país já atingiu mais de 540 mil visualizações no Youtube, além de render um disco triplo de diamante à artista.