Marcos Losnak
De Londrina
Especial para a Folha2
Há 90 anos morria o escritor norte-americano Mark Twain, criador de clássicos como ‘‘As Aventuras de Tom Sawyer’’ e ‘‘As Aventuras de Huckleberry Finn’’
Após a aula, o garoto Samuel perambulando pelas ruas da pequena cidade aprendendo todas as coisas que a escola não ensinava. Com oito anos de idade aprendeu a fumar e não se afogar nas águas do Rio Mississippi durante as pescarias. Quando pai morreu de pneumonia, assistiu a autópsia do corpo pelo buraco da fechadura.
Entre suas façanhas, uma ficaria marcada em sua memória: a morte de um homem. Na cadeia da cidade havia uma única cela, semanalmente ocupada por um único preso, o eterno bêbado do lugar. Certo dia o homem pediu-lhe, pela janela, fósforos para acender o cachimbo. Prestativo, Samuel entregou-lhe uma caixa de fósforo. Em poucos minutos o bêbado colocou fogo na cadeia e, por fatalidade, acabou morrendo queimado.
As aventuras de infância de Samuel Langhorne Clemens, mais conhecido como Mark Twain (1835-1910), se tornariam mais tarde o mais puro ingrediente de sua literatura. Clássicos como ‘‘As Aventuras de Tom Sawyer’’ (1876) e ‘‘As Aventuras de Huckleberry Finn’’ (1884) estão repletos de lembranças vividas e inventadas de suas experiências de liberdade. Nos prefácios dos livros, deixou registrado que a maioria das aventuras relatadas realmente aconteceram: ‘‘Uma ou duas me são pessoais, as outras aconteceram com meus colegas de escola. Huck Finn é descrito em sua essência, Tom Sawyer também, mas não de um único indivíduo, ele é a combinação das características de três garotos conhecidos meus.’’
Após 90 anos de sua morte, em 21 de abril de 1910, a obra de Mark Twain permanece como rio altamente navegável. Com um estilo pautado pela oralidade - fator que contribuiu para sua grande popularidade - a grande maioria dos textos do escritor norte-americano possuem fortes componentes autobiográficos. Seus textos são extensões de experiências, uma espécie de sentido para a própria memória. Ao mesmo tempo que retratos de época, são espelhos do espírito juvenil. Com humor, declarava que, quando jovem, era capaz de se lembrar de qualquer coisa, acontecida ou não, mas na velhice só se lembraria das coisas que nunca tinham acontecido.
Na realidade Mark Twain não precisou inventar muitas histórias para construir sua literatura, pois sua própria vida foi um celeiro natural de histórias. Nasceu em 30 de novembro de 1835 em Flórida, Missouri. Ainda pequeno se instalou com a família na pequena cidade de Hannibal, um porto comercial às margens do Mississippi, rio que se transformou em um de seus grandes personagens. Com quinze anos de idade começa a trabalhar como aprendiz de tipógrafo e depois transforma-se em impressor itinerante de várias cidades. De volta a Hannibal realiza o grande sonho de todos os garotos da região, tornar-se piloto de barcos no mitológico Mississippi.
Com a eclosão da Guerra Civil Americana em 1861, a navegação fluvial sofreu um grande abalo com o concorrência das estradas de ferro. Perdendo o emprego de piloto, entra na guerra como soldado confederado. Não se ajustando à vida militar, abandona a farda passa a trabalhar como mineiro nas minas de prata de Nevada. Cansado e sem dinheiro, joga as pá para o alto e consegue um emprego como repórter no periódico ‘‘Enterprise’’.
Em 1863 adotou o pseudônimo de Mark Twain, nome retirado do grito ‘‘mark: two!’’ proferido pelos marinheiros do Mississippi. Literalmente o termo significa ‘‘marca: duas (braças)!’’, uma medição de profundidade de água através de sondas. Indicava a profundidade ideal para a navegação com segurança. Nessa época conhece o humorista Artemus Ward, famoso em todo o país. Inspirado por Ward, Twain iniciou sua carreira de humorista, contanto histórias em pequenos teatros. Mas o sonho de enriquecimento rápido fez com que abandonasse tudo e fosse procurar ouro nas minas da Califórnia.
Trabalhou como um louco e se tornou mais pobre que antes. Apesar a desilusão a experiência lhe rendeu uma história, ouvida de um garimpeiro. Colocou a história para o papel publicando-a com o título de ‘‘A Célebre Rã Saltadora do Condado de Calaveras’’ em vários jornais. Foi o primeiro sucesso literário e marcou sua volta ao jornalismo como correspondente.
Apesar dos vários livros que publicou, entre eles ‘‘Os Inocentes no Estrangeiro’’ (1869), ‘‘Vida no Mississippi’’ (1883), ‘‘O Príncipe e o Mendigo’’ (1880), ‘‘Um Ianque na Corte do Rei Artur’’ (1889), ‘‘O Forasteiro Misterioso’’ (1916) e ‘‘Autobiografia’’ (1924), Mark Twain sempre foi e sempre será lembrado pelos sedutores ‘‘As Aventuras de Tom Sawyer’’ (The Adventures of Tom Sawyer), ‘‘As Aventuras de Huckleberry Finn’’ (The Adventures of Huckleberry Finn) que hoje são classificados como clássicos da literatura infanto-juvenil. Nestas obras imortalizou a infância, com o coração batendo por aventuras e liberdade, numa típica pequena cidade do interior.
Idolatrado por milhares de leitores espalhados pelo mundo todo, Mark Twain morreu com a amargura exalando dos poros. Em seus últimos anos de vida, tornou-se um velho pessimista disparando críticas aos quatro ventos, principalmente à sociedade americana. Sua ácida postura de que ‘‘tudo o que é humano é patético’’ tornou exacerbada: ‘‘O homem que é pessimista antes dos cinquenta sabe demais; o homem que é otimista depois dessa idade sabe de menos.’’
Em uma lendária entrevista concedida por Mark Twain em 1889 ao escritor inglês Rudyard Kipling (1865-1936), na época com pouco mais de vinte anos, algumas palavras do criador de Tom Sawyer e Huck Finn anunciam o nascimento de sua amargura: ‘‘A consciência é um estorvo. Ela é como uma criança. Se você enchê-la de mimos, brincar com ela e deixá-la ter tudo o que deseja, irá estragá-la, e ela vai se intrometer em todos os seus prazeres e pesares. Trate a sua consciência como se deve tratar uma criança. Quando ela se mostrar rebelde, bata nela, seja severo, discuta, evite que ela venha brincar com você a qualquer momento. Assim você terá uma boa consciência. Em outras palavras, uma consciência devidamente treinada. Uma consciência mimada acaba com todos os prazeres da vida. Eu acho que a minha me obedece. Pelo menos ela não me aborrece há algum tempo. Talvez eu a tenha matado por excesso de severidade. É errado matar uma criança, mas, apesar de tudo o que disse, a consciência difere da criança em vários aspectos. Talvez o melhor seja matá-la.’’