SEXO, RUM E MISÉRIA
PUBLICAÇÃO
sábado, 17 de março de 2001
Marcos Losnak De Londrina Especial para a Folha 2
Para um homem que vive na periferia da alma, a existência é composta por duas necessidades básicas instintivas: comida e sexo. Assim, a sobrevivência transforma-se num eterno jogo anestesiado entre satisfação e insatisfação. Um contexto alimentado pela miséria, onde só existe o presente, o aqui e agora sem nenhuma migalha de luz no final do túnel.
Essa pode ser a síntese de O Rei de Havana, novo romance do escritor cubano Pedro Juan Gutiérrez lançado pela Editora Companhia das Letras. Contando a história de um garoto chamado Reynaldo, apresenta a nua e crua deteriorização do ser humano de maneira desbocada e sem moralismo.
Gutiérrez é enfático em afirmar que ao cubano sé resta o rum, a salsa e o sexo. Faz desse tripé, que possui suas bases na miséria, seu maior ponto de apoio. Em seu romance anterior, Trilogia Suja de Havana (Companhia das Letras, 1999), já fincava o pé nessa direção e passou a ser considerado uma espécie de Bukowski de Cuba.
A exacerbada sexualidade do povo cubano pintada por Gutiérrez chega parecer caricata. Mas não é só Guiérrez que faz tal retrato. O também escritor cubano Reinaldo Arenas que cometeu suicídio em 1990 traça retrato muito semelhante em seus livros. Para ele, a força da luxúria seria uma válvula de escape decorrente da repressão política e econômica do país.
Logo nas primeira páginas de O Rei de Havana Pedro Juan Gutiérrez apresenta o início da trágica existência do personagem Reynaldo, protagonista e anti-herói do romance. Sua infância consiste em ser espancado pela mãe, passar fome, perambular pela ruas de Havana e morar num pequeno cômodo na companhia de porcos e galinhas.
Certo dia assiste, em questões de minutos, a morte de toda a família. Vê a mãe ser assassinada pelo irmão mais velho, o irmão se suicidar em seguida e a avó sofrer um ataque cardíaco ao presenciar a cena. Reynaldo, com 9 anos de idade, não consegue explicar a polícia o que aconteceu e, suspeito pelas mortes, é confinado numa instituição de menores delinquentes.
Consegue fugir da instituição ao completar 16 anos e passa a levar uma vida errante pelas becos e bueiros de Havana. Vive de pequenos furtos, mendicância e trabalhos esporádicos. Passa os dias tomando rum, dormindo em prédios abandonados e fugindo da polícia. Além disso, vive uma infindável maratona sexual promíscua. Com seu mitológico pênis de grandes dimensões, encanta multidões.
A trajetória de Reynaldo pelos esgotos da sociedade cubana é de uma miséria crônica. Sob o domínio do desamparo e a total ausência de expectativas, ele caminha para a destruição num ambiente em amplo processo de desagregação. Sua incapacidade de enxergar o que ocorre com sua existência, com o mundo a sua frente, empurra-o para uma violenta deteriorização moral e física. O final de sua trajetória revela o ápice da tragédia contemporânea: do nada para o super-nada.
O Rei de Havana pode ser lido através de vários enfoques. Um panorama da atual situação de Cuba longe dos cartões postais. Um líbero da energia sexual dos trópicos. Um manifesto trágico da rebeldia juvenil. Uma literatura que se encaixa com perfeição na galeria dos malditos. Um prosa relaxada que coloca em evidência o lado cruel e ao mesmo tempo picaresco das misérias.
A biografia de Gutiérrez faz parte do universo que descreve em seus romances. Nascido em 1950, começou a trabalhar aos 11 anos de idade como vendedor de sorvetes e jornais. Passou pelas mais variados trabalhos, foi soldado, trabalhador agrícola, instrutor de natação, técnico em construção, desenhista técnico, locutor de rádio, etc. Fincou pé como jornalista, profissão que exerceu por quase 20 anos em Havana.
Entrou na literatura através da poesia, tendo publicado vário livros de versos. Fez sua estréia na prosa em 1998 com Trilogia Suja de Havana, obra que foi publicada em vários países alcançando grande projeção. Pedro Juan Gutiérrez é apontado como a voz de maior impacto da literatura cubana da atualidade. Curiosamente, os próprios cubanos não têm acesso a sua literatura. Isso porque seus livros não são publicados em Cuba.
Tanto em Trilogia Suja de Havana, como no radicalismo de O Rei de Havana, Gutiérrez faz literatura a partir da realidade. Sua narrativa é uma janela aberta para a rua. Do mesmo modo que seu teor político é apresentado de forma indireta, oferece um lado considerado obscuro ou mascarado do comportamento humano. Sobre sexo, por exemplo, sua prosa pode ser definida com suas palavras próprias: Sexo não é para gente escrupulosa. Sexo é um intercâmbio de líquidos, de fluídos, de saliva, hálito e cheiros fortes, urina, sêmen, merda, suor, micróbios, bactérias. Ou não é. Se é só ternura e espiritualidade etérea, reduz-se a uma paródia estéril do que poderia ser. Nada.
A rebeldia da obra do escritor pode até divertir o leitor num primeiro momento, mas com o decorrer das páginas a angústia entra em campo e gruda nos olhos com dedos nada sutis: A arte só serve para alguma coisa quando é irreverente, atormentada, cheia de pesadelos e desespero. Só uma arte irritada, indecente, violenta, grosseira, pode nos mostrar a outra face do mundo, a que nunca vemos ou nunca queremos ver, para evitar incômodos a nossa consciência.
O Rei de Havana De Pedro Juan Gutiérrez, Editora Companhia das Letras (telefone 11 3846-0801), tradução de José Rubens Siqueira, 230 páginas, R$ 26,00.
