As novas gerações talvez não tenham a mínima ideia, mas nas décadas de 1970 existiu um cantor mineiro chamado Nelson Ned que arrastava multidões em todos os países da América Latina. Cantava em português, espanhol, inglês e italiano. Seus discos estavam entre os mais vendidos no Brasil e países das três Américas.

Com uma voz de arrasar quarteirões, Nelson Ned tinha quase um metro de altura. Nascido com nanismo em 1947, era considerado cantor brega pela crítica e cantor romântico pelas multidões. Para se ter uma ideia de sua popularidade, em 1973 gravou três discos e os três apareceram nos primeiros lugares da lista de mais vendidos da revista Billboard. Em 1974 fez quatro shows na lendária sala de espetáculos Carnegie Hall de Nova York. Devido a grande procura por ingressos, precisou fazer dois show no mesmo dia.

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Falecido em 2014 no mais completo ostracismo, Nelson Ned acaba de ganhar sua primeira biografia, “Tudo Passará – A Vida de Nelson Ned, o Pequeno Gigante da Canção”, escrita pelo jornalista André Barcinski. Lançada pela editora Companhia das Letras, a obra revela fatos da vida do cantor capaz de deixar no chinelo qualquer rockstar doidão.

Nelson Ned, em suas composições e repertório, cantava amores impossíveis e amores não correspondidos. Tudo de maneira dramática e sofrida. O que pouco que se sabe, é que por trás da imagem de grande compositor romântico e cantor evangélico, Nelson Ned levou uma tumultuada vida regada a excessos de sexo e drogas.

Mas também tinha um lado sentimental. Antes dos shows, Nelson Ned atendia ambulâncias que ficavam paradas nas ruas próximas. Entrava em cada uma delas e cantava para os enfermos deitados em macas: “Para aquelas pessoas, Nelson Ned era muito mais que um cantor romântico. Suas músicas falavam de amor, claro, mas sempre do ponto de vista dos excluídos e desprezados. Os títulos das canções eram verdadeiras súplicas:" Eu também sou sentimental", "A pior fase da minha vida", "Quando eu estiver chorando", "Minha vida daria um livro", "Traumas da infância", "Os bairros pobres da cidade", "Não pise em cima de mm", "Faça de conta que você gosta de mim", "Meu jeito de amar...”

O escritor colombiano Gabriel García Márquez era um dos admiradores de Nelson Ned: “Os artistas e intelectuais brasileiros davam risinhos quando revelei que tenho em casa todos os discos de Nelson Ned”. Em numa entrevista, perguntado se por acaso seus romances fossem músicas, que gênero musical eles poderiam ser, García Márquez respondeu: “Seriam uns boleros vagabundos, buscando inspiração em Chico Buarque, mas cantados por Nelson Ned.”

Imagem ilustrativa da imagem Sexo, drogas e bolero: a vida de Nelson Ned
| Foto: Divulgação

FAMA E TRÁFICO

No auge da fama, Nelson Ned cantava em boates comandadas pelos cartéis de Cali e Medelín: “Os traficantes mandavam seus aviões particulares buscaram Nelson e a banda no aeroporto Campo de Marte, em São Paulo, e os levavam para shows privados em suas mansões na Colômbia. Num desses shows, Nelson foi apresentado a um grande admirador, que começava a se despontar como um nome temido do crime organizado colombiano: Pablo Escobar.”

Assim como a ascensão de Nelson Ned foi meteórica, a queda também: “Nelson percebia que seu tempo havia passado. Diferentemente de Roberto Carlos, por exemplo, que sempre tentou acompanhar ar tendência e adaptou seu repertório aos novos tempos, conseguindo assim manter uma base fiel de fãs sem perder a relevância, Nelson Ned não mudou. Era o mesmo cantor romântico dos anos 1970, com o mesmo terno e o mesmo repertório. Seus crescentes problemas físicos dificultavam cada vez mais os shows e as turnês, e o interesse do público por ele foi diminuindo rapidamente. Nelson estava cansado e doente. Ele tinha engordado muito e não conseguia andar com a desenvoltura de antes.”

Quando tentou abandonar o uso de cocaína, começou a gravar apenas discos evangélicos. Então as vendas despencaram e os shows desapareceram. Nas tentativas de vender seus shows, seu produtor ouvia sempre a mesma frase: “Por que eu vou pagar cachê alto para o Nelson Ned se ele vai cantar de graça na igreja aqui na cidade?”

Com o passar dos anos, o corpo de Ned começou a sentir as consequências do nanismo. Vivia com dores insuportáveis na coluna e no quadril, perdeu a visão do olho direito. Tentava superar as dores com anestésicos, uísque e cocaína. Terminou seus dias literalmente como cantor de churrascaria, se apresentando sozinho em restaurantes de rodovias. Cantava acompanhado de instrumentais gravados em um CD.

FRASES DO CANTOR

Confira trechos do livro sobre Nelson Ned

“Eu sempre tive por norma nunca traficar com minha singularidade. Ela está em mim apenas como um detalhe, como se eu fosse louro, ou fosse negro, só isso. No disco, as pessoas não têm estatura e nem cor, então, se eu vendo meus discos, se as pessoas compram os meus discos e vão aos meus shows, elas não vão pelos meus centímetros, elas vão para ver aquilo que elas já conhecem do meu trabalho. Eu costumo chamar minha estatura de singular. E a singularidade, hoje em dia, é uma arma, é uma vantagem.”

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“Eu não creio em criação sem sofrimento, eu não creio em arte sem sofrimento. A arte é produto do sofrimento, ela é filha do sofrimento. No meu caso, a música sempre foi consequência de uma causa, que foi a dor. E a dor vende, a tristeza vende.”

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“Eu sou um cantor romântico. Eu não represento a música popular brasileira, eu represento a música que eu componho, a música romântica brasileira, que também é uma realidade no Brasil, embora não seja rotulada como tal. No Brasil existe uma discriminação sistemática de certa parte da imprensa ao tipo de música que faço. Basta ter capacidade de amar, para compreender as mensagens de minhas músicas. Um artista não defende bandeiras, nem ideologias políticas.”

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“Sou um heterossexual irrecuperável. Acho que sexo é como sede. Cada um sabe a sede que sente e quantos copos de água são necessários para saciá-la. Eu tenho muita sede. O fato de eu ser pequeno não prejudica em nada minha relação com o sexo oposto. O amor na cama é horizontal, os corpos se nivelam. Se fosse na vertical, aí sim, talvez eu tivesse que fazer uma escada de ouro. Francamente não posso me queixar. Eu atinjo a mulher em dois instintos básicos dela: a maternidade e a curiosidade.”

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“Chico Buarque nasceu em berço esplêndido, foi criado na nata da cultura do intelectualismo. Ele, Nara Leão, exploram o pobre. Eles cantavam ‘carcará, pega, mata e come’, mas eles nunca viveram isso, nunca foram nas favelas. É bonito você cantar a desgraça alheia. Eu sempre cantei a minha desgraça, a minha realidade social e espiritual. Eles cantaram a realidade social, mas não a deles, eles sempre cantaram uma realidade social que não lhes correspondiam. Eles são cafetões da miséria brasileira. Eles exploravam modismo da contestação e cobravam em dólar. Eles nunca foram sinceros.”

SERVIÇO:

“Tudo Passará – A Vida de Nelson Ned, o Pequeno Gigante da Canção”

Autor – André Barcinski

Editora – Companhia das Letras

Páginas – 256

Quanto – R$ 79,90 (papel) e R$ 39,90 (e-book)