A cineasta Agnès Varda costumava dizer: “Não estou interessada em ter uma carreira. E sim em criar um universo”. No cinema brasileiro, nenhum outro realizador criou um universo tão particular, único e atemporal como o diretor baiano Glauber Rocha (1939-1981), autor de clássicos como “Terra em Transe” (1967), “O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro” (1969) e “A Idade da Terra” (1980).

Nesta sexta-feira (10), às 19h, a produtora Kinopus em parceria com o Espaço Villa Rica exibem a cópia restaurada do primeiro filme de Glauber a ter amplo reconhecimento internacional: “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1964, 120 min). O filme foi restaurado em 4K: essa nova cópia estreou no ano passado no Festival de Cannes e desde então acendeu novo interesse sobre a obra.

Para Glauber Rocha, "a fome latina não é somente um sistema alarmante: é o nervo de sua própria sociedade"
Para Glauber Rocha, "a fome latina não é somente um sistema alarmante: é o nervo de sua própria sociedade" | Foto: Divulgação

Glauber é certamente o diretor brasileiro mais reconhecido internacionalmente. Autor do conceito “Estética da fome”, ele defendia um cinema autônomo e de perspectiva decolonial: “A fome latina não é somente um sistema alarmante: é o nervo de sua própria sociedade. Aí reside a trágica originalidade do Cinema Novo diante do cinema mundial: nossa originalidade é nossa fome e nossa maior miséria é que esta fome, sendo sentida, não é compreendida”.

Com profundas raízes na cultura popular nordestina, e grande conhecedor da cultura erudita, Glauber promoveu uma espécie de fusão até então inédita no cinema mundial: ele mesclava alegoria ao documento, crítica social ao delírio, a anti-técnica a um transe errático e também profético. Nos seus filmes há uma verdade sobre a cultura brasileira que não é tese sociológica nem plena intuição: “Nosso cinema é novo porque o homem brasileiro é novo e a problemática do Brasil é nova (…) No Brasil, o cinema novo é uma questão de verdade e não de fotografismo. Para nós, a câmera é um olho sobre o mundo (…) Minha intenção é mergulhar na realidade brasileira, suas lutas e lendas, para chegar a exprimir a alma do meu povo em toda sua complexidade”.

Glauber relata que alguns filmes surgiram para ele como uma espécie de visão, evidência. No caso de “Deus e o Diabo”, o filme foi inspirado na literatura de cordel. Além da influência de Eisenstein e de John Ford, “Deus e o Diabo” nos oferece a singularidade de um contraponto musical que acompanha a trama criado pelo músico Sergio Ricardo e que atinge o êxtase com a música de Villa-Lobos: “No Cinema Novo há uma tendência de se fazer filmes onde a música não seja somente um comentário, mas elemento tão importante quanto os diálogos e a fotografia. Eu estava inspirado por Villa-Lobos quando fiz Deus e o Diabo. Há uma cena no filme que eu tive ideia de filmar porque eu havia ouvido a música - é a cena dos beijos - entre Corisco e Rosa”.

Essa relação tão profunda com a música está em vários filmes de Glauber: “Nós somos um povo talvez subdesenvolvido do ponto de vista cultural, mas bastante desenvolvido em relação à música”. Essa estrutura dramática com suporte musical promove em alguns filmes uma mescla desconcertante: em meio à mais extrema violência surge um lirismo sombrio, uma esperança estilhaçada, uma reaproximação a uma certa mitologia inatual que parece sempre fazer a mesma pergunta: “é possível fugir ao nosso destino?”.

"Deus e o Diabo na Terra do Sol", filme de Glauber Rocha é marco emblemático do Cinema Novo
"Deus e o Diabo na Terra do Sol", filme de Glauber Rocha é marco emblemático do Cinema Novo | Foto: Divulgação

LIVRO SOBRE AS MÚSICAS

Essa relação tão forte com a música no cinema de Glauber é um dos temas do livro que será lançado nesta sexta-feira logo após a exibição da cópia restaurada de “Deus e o Diabo”. O livro “Sonata de Deus e o diabolus: música, cinema e pensamento modernista” (2022, 194 páginas, Eduel), de autoria de André Ricardo Siqueira, analisa três filmes de Glauber: “A questão da música nesses filmes funciona como peça determinante na própria forma do filme. Já que a produção, a montagem deles é muito em função da música”, diz Siqueira. O livro estará à venda no Espaço Villa Rica pelo preço de R$ 55,00.

CINECLUBE SK NO VILLA RICA

A Sessão Kinopus no Espaço Villa Rica pretende oferecer ao público londrinense a chance de assistir a filmes inéditos na cidade, com debates e lançamento de livros, apresentações musicais, discotecagens temáticas etc. As sessões devem ser mensais e incluir produções locais também.

Serviço:

Sessão Kinopus no Villa Rica - Exibição da cópia restaurada de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, de Glauber Rocha + lançamento do livro “Sonata de Deus e o diabolus: música, cinema e pensamento modernista”, de André Siqueira.

Após a sessão haverá um debate sobre o filme e o livro com mediação do cineasta Rodrigo Grota

Quando: Sexta-feira (10), às 19h

Onde: Sala de Cinema do Espaço Villa Rica (Rua Piauí, 211, Bloco Cinema)

Quanto: Ingressos a R$ 12 (meia-entrada) e R$ 24 (inteira)

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