A maçaneta redonda da porta girou pelas mãos de um produtor. Que abriu o sorriso com largos dentes e sussurrou, novamente, ao pé do ouvido, o “mantra”: “Não demora, tá?!” Hum!

- Com licença, tô entrando. Tudo bem, como vai você?

- Tudo bem! Pode entrar.

- Serei breve - disse em alto e bom som, olhando para o produtor.

- Senta aí, vamos conversar.

Sentadinha no sofá, num camarim improvisado - bem ornamentado, por sinal -, Rita Lee produziu várias onomatopeias - vraaammm! – com o leque vermelho imenso que empunhava.

Ela provocou ventanias durante a entrevista, concedida numa tarde calorenta, após a passagem de som do show, que aconteceu na noite do dia 27 de outubro de 2007, no Centro de Eventos de Londrina.

Todo mundo cantou, aplaudiu e riu da performance da Ritoca no palco, a persona debochada ao vivo e em cores
Todo mundo cantou, aplaudiu e riu da performance da Ritoca no palco, a persona debochada ao vivo e em cores | Foto: Renato Forin Jr./Divulgação

Últimos aplausos, ao vivo, de Londrina ao ícone maior do rock brasileiro, que morreu aos 75 anos, em 8 de maio de 2023. Derradeira apresentação comemorativa às quatro décadas de trajetória artística e aos quase 60 anos de idade.

A conversa ocorreu após a passagem de som. No palco, os músicos, técnicos de som e de iluminação se agitavam há quase uma hora. Por volta das 16h30, Rita Lee encaminhou-se ao grande tablado, acompanhada de um segurança com um tanto assim de altura e outro tantão de envergadura – um guarda-roupa com trocentas portas.

Microfonia.

- Tá altíssimo tudo, porr*!

Deu pitacos aqui, ali. Passou uma, duas, três ou quatro músicas. Roberto de Carvalho, seu companheiro, não compareceu ao ensaio geral - Beto Lee fez as vezes do pai. Satisfeita com os ajustes, Rita voltou ao camarim, acompanhada de seu fiel guarda-roupa e de seu produtor.

No caminho de volta, esse que vos escreve a aborda. Com voz quase fininha, solicitei uma entrevistinha rapidinha para a Ritinha. Disse quem era euzinho e ela topou. Falei com o produtor que pediu para aguardar um pouquinho.

Houve solicitação formal de entrevista à produção, dias antes do show – via e-mail. Até hoje, não houve retorno. No entanto, um pintassilgo gorjeou: “Ela vai passar o som às 16 horas”. Foi assim que despencamos, Renato Forin Jr. mais eu, no Centro de Convenções, localizado logo ali.

Forin Jr, dezesseis anos atrás, atuava como jornalista e fotógrafo. O rapaz cresceu, tornou-se uma referência nacional na literatura, na dramaturgia (escritor, ator e diretor). Um intelectual de primeira grandeza. Meu amigo.

“Não quero mais fazer shows” - Cabelos vermelhos sem a peculiar franja, arredondados óculos verdes na ponta do nariz, olhos azuis deste tamanho de céu. Calça jeans, camiseta, pulseiras, tênis, o leque vermelho – vraaammm!

Panos com belas estampas a enfeitar o espaço; varetas de incenso - a fumaça cheirosa adensando o ambiente. Um cinzeiro – quadrado, transparente e limpo - na mesinha ao lado. O “rec” no gravador portátil com microcassete, o máximo em tecnologia.

A entrevista. Pergunta inicial: o show de 40 anos poderia ser chamado de “Rita Hits”?! Respondeu a Lee que a turnê foi projetada para o público “matar a saudade” dela, e vice-versa. Respostas protocolares inicialmente.

Há 16 anos, em entrevista exclusiva, Rita Lee anunciou o desejo de não mais excursionar Brasil e mundo afora.

- Não tenho mais saco, nem idade [para turnês]. É cansativo... Vou adiante até quando eu quiser. Quero sossegar, mas continuar compondo, gravando discos... Assim, a gente [Roberto de Carvalho e ela] está morando numa casa, no meio do mato, na Granja Viana, perto de São Paulo. Vivo cercada de bichos, de plantas, de natureza, da minha Neta [Izabella, nascida em 2005]. Tenho vontade de sair de lá só se me pagarem muito bem. Um ou outro show sim, eu topo, porque adoro palco. Mas essa vida cigana de estar um dia aqui e no outro lá, não estou querendo mais não.

Detalhe das pulseiras da doce roqueira: “Não tenho mais saco, nem idade [para turnês]. É cansativo...”, já dizia há 16 anos
Detalhe das pulseiras da doce roqueira: “Não tenho mais saco, nem idade [para turnês]. É cansativo...”, já dizia há 16 anos | Foto: Renato Forin Jr./Divulgação

Quase 45 minutos de conversa, sob ventos advindos do leque vermelho. Abanou o repórter, gentilmente. Agradeço à “rainha do rock”. Resposta de sua Alteza: “Rainha, não: avó do rock”. Então tá.

Aos 40 anos na estrada de vida artística e seis décadas de existência, até então. Ela: - Ah, minha vida até aqui foi boa, muito boa... Só tenho a agradecer. “

- Dá para fazer um balanço?

Arregala os olhos azuis e responde: “Minha vida foi muito boa... Só tenho a agradecer, embora 'I can't get no satisfaction', saca"?

"BIOGRAFIA SÓ QUANDO A PESSOA MORRE"

Conversa vai, conversa vem. O assessor já se abanando com as mãos, para encerrar a entrevista. Rita estava à vontade, eu também. Provoco:

- Você já pensou numa biografia ou autobiografia?

- (risos) Autobiografia, não, eu acho... Um rapaz [Henrique Bartsch] escreveu o livro “Rita Lee Mora ao Lado – Uma biografia Alucinada da Rainha do Rock” [2006, vertido para um musical], que mistura realidade e ficção. Assim, eu acho que essa coisa biografia só é completa quando a pessoa morre. E eu tô viva ainda, cheia de graça, né mesmo?

Ô, se tava. Aconteceu o seguinte: Rita Lee publicou sua primeira autobiografia em 2016, em que relembrou passagens pessoais e profissionais, com participação do jornalista e pesquisador Guilherme Samora.

Em outra autobiografia, lançada recentemente, Rita Lee abordou, sobretudo, a luta contra o câncer de pulmão, a quem nomeou “Jair”. Tudo escrito com a objetividade contornada com a ironia da também escritora Rita Lee Jones de Carvalho. Que publicou, entre 1986 e 1992, quatro livros infantis.

RITA HITS: O SHOW, O PÚBLICO

Noite de 27 de outubro de 2007. Centro de Convenções de Londrina habitado por fãs – muitos e tantas – à espera de Rita Lee e cia. O show começaria às 22 horas.

Plateia agitada, feliz da vida. Espaço lotado. Lá pelas tantas, Rita sobe ao palco toda trabalhada em aplausos, assovios, gritos, reverências. Irreverências da “avó” do rock, que cantou sucessos.

Arrancou o chiclete mascado; colou num recipiente qualquer. “Flagra” abriu a noitada. O corinho do público. Cantou “Saúde”, “Mutante”, “Cor de Rosa Choque” e, claro, “Ovelha Negra”.

Todo mundo cantou. E aplaudiu e riu da performance da Ritoca no palco, a persona debochada ao vivo e em cores. Cantou duas inéditas: “Tão” (feita para “aquela cantorinha” da dupla com o parente (“Tão boazinha, tão certinha, tão boa gente, tão correta, tão legal, tão galera, tão chata”); e “Dinheiro”.

Cantou até o galo cocorocar. Nunca mais voltou a Londrina. Foi desta para o astral. Há um mês e poucos dias, Rita Lee oficializou sua eternidade.

A Rita levou meu sorriso.