Há uma linha tênue entre explorar e tirar proveito, como qualquer ator (ou jornalista) honesto pode dizer. O diretor americano Todd Haynes, mestre indiscutível do genero. conduz com extrema habilidade e o necessário talento este drama artisticamente perturbador, inspirado em uma história real. Julianne Moore e Natalie Portman são as protagonistas cujas vidas pessoais e profissionais se cruzam de maneira inesperada. Moore é Gracie, cujo casamento com o muito mais jovem Joe (interpretado por Charles Melton, do programa televisivo “Riverdale”) gerou manchetes há décadas em tablóides sensacionalistas. Prestes a entrar na fase do ninho vazio desta união surpreendentemente bem-sucedida, eles conhecem Elizabeth, a personagem de Portman, uma atriz cheia de métodos que quer interpretar Gracie em um filme sobre os primeiros anos daquele improvável (?) casal. A subsequente descoberta de segredos e queixas cria uma situação tensa para os três.

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“A razão pela qual este filme parece tão perigoso é que as pessoas não sabem onde estão os limites de ninguém”, disse Julianne Moore em entrevista dada a jornalistas no último Festival de Cannes, em maio de 2023. Pois então: pegue esta história real mas que virou romance da mídia-sensação nos anos 1990, adicione as vencedoras do Oscar Julianne Moore/Natalie Portman, bata em um liquidificador pós-moderno e tempere a gosto com uma deliciosa mistura de artifício camp mais um bocado de teatralização, ironia, o consumo midiático de massa, o melodrama clássico e um sério exame de consciencia. Este mix é “Segredos de um Escândalo” (May December), uma reflexão inebriante sobre identidade e autenticidade. Entre outras coisas.

A personagem de Julianne Moore é alguém transgressor. E como se pode resolver tal problema, já que diferença de idade é uma coisa mas o relacionamento entre uma adulta (ela) e uma criança de 12 anos (ele) é algo completamente diferente. Aqueles com longa memória de escândalos de fatos policiais verdadeiros se lembrarão de Mary Kay Letourneau, a professora na casa dos 30 anos cujo caso amoroso de estupro (?) em 1994 com um aluno levou à gravidez, à prisão e a um casamento de 14 anos. No relato ficcionalizado do diretor Haynes, o transgressor é Gracie Atherton-Yoo, seu amante estudante é Joe Yoo , e o caso deles começou de fato em um pet shop em Savannah, quando ela tinha 36 anos e ele 13.

Agora, muitos anos depois das manchetes chocantes e da pena de prisão cumprida (além de um filme brega feito para a TV que sensacionalizou seu status de pária), Gracie e Joe estão desfrutando de uma vida estável na Geórgia enquanto seus filhos se preparam para se formar no ensino médio. É quando chega Elizabeth Berry (Natalie Portman), estrela do programa de TV de sucesso Norah's Ark e atriz principal de um próximo filme independente baseado na história de Gracie e Joe. Ela quer pesquisar e preparar seu papel passando um tempo com Gracie e família.

Confira o trailer oficial:

ESPELHO DO CINEMA

O segredo do melodrama é o espelho. E um diretor como Todd Haynes, tão perfeitamente obcecado pelo mestre de todos, Douglas Sirk (o criador deste subgênero, este dos melodramas de espelhos), a ponto de ousar, como ousou, compor em “Longe do Paraíso”/Far from Heaven (2002) um espelho do clássico “Tudo o que o Céu Permite” (1955) de Sirk, sabe bem disso. Esta sua nova proposta, “Segredos de um Escândalo), é um espelho do começo ao fim; um espelho de si mesma. E um espelho do cinema e até da vida. Claro, um espelho tão perfeitamente polido, austero e voraz que é extremamente cortante e afiado. Dilacerante mesmo.

Neste filme que entra hoje , quinta-feira (25), em segunda semana em Londrina, conta-se esta história da atriz Portman que vai à casa de uma mulher, Moore, para aprender a ser ela; para imitá-la. O que a primeira deseja é que a segunda lhe ensine o papel de seu próximo filme adequadamente baseado em acontecimentos reais, aqueles de 20 anos atrás quando a personagem de Moore, nos seus 30, virou isca para todos os escândalos ao seduzir um garoto de 13 anos, o garoto que acabou sendo seu marido e pai de três filhos que hoje são adolescentes. O que se segue é a descrição pontual de um desastre coletivo onde todos, absolutamente todos, nada mais fazem do que viver uma vida adiada, uma vida falsa, uma vida que nada mais é do que, como diria Sirk, uma “Imitação da Vida”, outro clássico dele, Sirk, a chave de ouro de sua despedida

Haynes, com sua sabedoria habitual, usa a linguagem do filme de TV de categoria bem baixa, quase infame, para construir uma parábola culta, exangue, perturbadora e exaustivamente confusa (no melhor dos sentidos) sobre a manipulação, os vestígios de abuso infantil, a imaturidade, a mentira cruel do amor romântico, a absoluta falta de escrúpulos da mídia. O filme nunca teme o ridículo (e em certo sentido até o abraça com premeditação e traição), se afasta da solenidade, do politicamente correto e do prestígio para abraçar um espírito desinibido e provocador. Um novo salto (nunca no vazio) de um realizador que, aos 62 anos, continua a investigar, a testar, a procurar novos caminhos e registros num cinema sempre estimulante.