'Seberg', cinebiografia sem alma
Colocado como cinebiografia convencional, comprometida por uma vocação didática, o filme segue a via crucis de Jean Seberg
PUBLICAÇÃO
quinta-feira, 12 de março de 2020
Colocado como cinebiografia convencional, comprometida por uma vocação didática, o filme segue a via crucis de Jean Seberg
Carlos Eduardo Lourenço Jorge
Pode ser que o roteiro que você, realizador, tenha em mãos seja extremamente interessante. Pode ser que sua equipe e seu elenco sejam de alto nível, profissionais a toda prova. Pode ser que o argumento que você vai contar seja uma história que a passagem do tempo tornou obscura, e Hollywood achou melhor não tocar no assunto para não ferir suscetibilidades. Tudo isso é possível, mas se você filmar sem fibra, com pulso débil, sem garra, sem sofreguidão, apenas focado no martírio de sua protagonista sofredora, o único resultado possível é uma cinebiografia sem alma como “Seberg Contra Todos”, agora em exibição em Londrina somente em uma sala.
Esta produção da Amazon Studios, inicialmente pensada para ser exibida apenas via streaming (e catapultada para salas de cinema sob o patrocínio mercadológico de Kristen Stewart no papel título), retrata um período concreto da vida de Jean Seberg, atriz estadunidense que revolucionaria o cinema europeu com sua simbólica (para evitar as desgastadas “icônica” ou “emblemática”) aparição em “Acossado /À Bout de Soufle”, de Jean Luc Godard, e que se transformaria em símbolo cultural e estético na década de 1960.
“Seberg” está centrado na volta da atriz de “Santa Joana”, “Bom Dia Tristeza” e “Lilith” (filme favorito dela) aos Estados Unidos, depois de sua decisiva temporada francesa. Um período convulsionado no qual a sociedade do país mergulhava no declínio do sonho hippie, enquanto recrudescia a luta pelos direitos civis e a alucinada escalada do país no Vietnam. Neste contexto, a personagem, apresentada no filme como um indomável 'free spirit', se transformou no alvo preferencial da infame campanha de opressão e terror utilizada pelos EUA, via FBI, para reprimir os sonhos de igualmente racial, paz e progresso social da grande parte dos cidadãos.
Colocado como cinebiografia convencional bastante comprometida por uma vocação didática, o filme segue passo a passo a via crucis de Seberg, cujos anseios de liberdade, refletidos no vinculo ideológico e sentimental com Hakim Jamal (Anthony Mackie) ativista pelos direitos dos afrodescendentes, se converteram aos olhos das autoridades em ameaça à ordem social. O filme tem algumas (poucas) ideias promissoras, como as primeiras imagens que se referem poeticamente ao trabalho de estreia de Seberg em “Santa Joana”, de Otto Preminger (1957), imagens que remetem à uma figura trágica; ou como a ideia de manter em foco a agitação sociopolítica do período.
Infelizmente, estes artifícios se tornam difusos diante do interesse do diretor australiano Benedict Andrews em converter “Seberg” numa espécie de psicodrama exaltado que não parece disposto a renunciar a nenhum dos incidentes da vida da personagem. Desde o affair com Jamal e seus vínculos com os Panteras Negras até seus problemas matrimoniais com o escritor Roman Gary (Yvan Attal) e sua frustração por não conseguir melhores papéis, passando por sua ambivalente relação com popularidade e a fama. E como sempre acontece com estas cinebiografias robustas, recheadas de anabolizantes, ao espectador não é oferecido tempo suficiente para processar todas as informações, com as ideias congestionando as linhas dos diálogos.
Outros problemas do filme são os personagens unidimensionais, desprovidos de qualquer profundidade; a superficialidade no tratamento daquele extrato da história americana (os anos 1960) e a suavidade fake da ortodoxia que é em suma o conceito geral de “Seberg”. E mais o retrato frívolo que resulta da personagem: é difícil acreditar que a implicação da atriz tivesse sido alguma coisa além de um capricho, segundo o relato do diretor Andrews. É uma pena, porque a vida de Jean Seberg merecia muito mais do que a frigidez desse projeto, que mais parece trabalho de final de curso. Que não se culpe Kristen Stewart, que faz o que pode, ainda que sem impressionar ninguém: todos sabem que, sendo ela algo mais do que “aquela da saga Crepúsculo”, suas expressões são limitadas. E termina sendo uma ideia, digamos, meio friki, essa história de metacinema: falta ao filme, no mínimo, todo o espírito subversivo e contracorrente que em dado momento caracterizou as duas atrizes.
Reproduzida no original com Jean ou reencenada com Kristen, faz muita falta uma cena que nunca vemos neste filme, agora sim, com inteira justiça, icônica ou emblemática: Seberg como a Patricia do mitológico “Acossado” de Godard (roteiro de Truffaut) vendendo o New York Herald Tribune nas ruas de Paris enquanto caminha e conversa com o jovem gangster Michel vivido por Jean-Paul Belmondo. Há exatos 60 anos, uma sequência inolvidável.