São Paulo, 16 (AE) - Imagine que depois de encenar "O Doente Imaginário", o dramaturgo Molire (1622-1673) comece a passar mal, seja atendido e, finalmente, morra nos braços de um amigo. Este, um anônimo marquês do século 17, acha a morte suspeita e passa a investigá-la. Enfim, um policial pré-iluminista, assinado pelo mestre brasileiro do gênero, o nunca suficientemente incensado Rubem Fonseca. O livro, "O Doente Molire" (Companhia das Letras, 143 páginas) faz parte da coleção Literatura ou Morte, que tem 12 títulos programados. Dois já saíram - "A Morte de Rimbaud", de Leandro Konder, e "Stevenson sob as Palmeiras", de Alberto Manguel. Todos apresentam duas características em comum: transformam grandes nomes da literatura mundial em personagens e as tramas sempre envolvem algum tipo de mistério.
No caso de Fonseca, o personagem é o dramaturgo francês Jean Baptiste Poquelin, dito Molire, autor de peças famosas - e cáusticas - como "O Médico Apaixonado", "As Preciosas Ridículas", "Escola de Maridos", "Escola de Mulheres", "Tartufo", "O Amor Médico", "O Misantropo", "O Avarento"
"As Sabichonas", "O Burguês Fidalgo", além, é claro, de "O Doente Imaginário", último trabalho dele.
Dado o teor das comédias, Molire era um tipo mais que odiado na vaidosa Paris do Rei Luís XIV. Como Fonseca descreve muito bem no pequeno romance, o termo moderno "fogueira das vaidades" poderia ser perfeitamente aplicado àquela cidade e àquela época. A joie de vivre parisiense, com os salões, cortesãs, gentilhomens de peruca e rostos empoados, convivia com uma corte de intrigas e manobras políticas de bastidores. Molire era um crítico afiado do seu tempo. Falava da hipocrisia moral dos contemporâneos, que condenavam em público aquilo que praticavam em particular. Incluía o clero nessa duplicidade moral e tratava os médicos como charlatães. Enfim, era o tipo de artista que bem poderia sofrer um fim trágico.
O livro é narrado, em primeira pessoa, pelo marquês anônimo, amigo e colega de colégio de Molire e que Fonseca decreta, desde o início do texto, ser o único personagem ficctício da novela. Todos os demais fazem parte da história real da França no século 17. Do dramaturgo morto em circunstâncias suspeitas aos colegas Racine e Corneille. Do rei à sua favorita, Mademoiselle de La Vallire, passando por Armande, atriz e mulher de Molire; da marquesa de Brinvilliers, sentenciada pelo assassinato do próprio pai e de dois irmãos, ao padre Roullé, que preconizava a fogueira como meio pio e eficaz para purificação da alma do autor de Tartufo.
Seria meio redundante observar que O Doente Molire confirma, ainda uma vez, o domínio técnico de Rubem Fonseca sobre seu instrumento de trabalho. Escritor habituado à trama policial (o crime, a investigação, o desfecho), sabe como manipular os tempos, manter o suspense e, portanto, o interesse, revelar um pouco da história oculta ao leitor, mas não o suficiente para que este possa deduzir, por conta própria, aquilo que só deve ser mostrado na última página.
É verdade que tudo, neste "O Doente Molire", conflui para o anticlímax. Mas é como se este fosse, também, mais um efeito desejado por Fonseca. Tarimbado demais no gênero para buscar a solução fácil, prefere trabalhar de maneira mais oblíqua. O marquês, amigo de Molire, quer sinceramente desvendar o crime. Mas, ao mesmo tempo, não é exatamente uma parte desinteressada. Tornara-se amante de Armande, mulher de Molire, quando o dramaturgo ainda estava vivo. Curiosamente, isso passa a lhe causar certos remorsos retrospectivos. Se não tinha escrúpulos em ir para a cama com a mulher do amigo quando este vivia, sente-se mal em fazê-lo depois que Armande tornou-se viúva.
Além disso, como verá o leitor, há uma particular passagem na vida do marquês que o impede de consagrar-se à investigação com todo o ardor e objetividade que o caso exigiria. Enfim, quem conduz a enquete é um tipo suspeito e hesitante. Um narrador pouco confiável, técnica que produz bons resultados porque o leitor não se sente seguro do terreno em que pisa. O agravante é que o marquês tampouco se mostra testemunha muito eficaz, ou envolvente, daquilo que está contando. O texto aparente às vezes é meio tosco ou até insosso (mas esta é uma astúcia suplementar de Rubem Fonseca). O próprio marquês se define como um nobre da melhor estirpe, mas que, de modo nenhum, poderia ser classificado como escritor. Longe disso. Ao apresentar o rascunho de uma peça de sua autoria, teria sido desencorajado por Racine em pessoa. Molire, seu íntimo, também não fora capaz de incentivar as tentativas teatrais do amigo.
Portanto, o marquês contenta-se em manter um diário, ou melhor, um registro assistemático do que lhe acontece - e esta é a matéria-prima daquilo que chega ao conhecimento do leitor. O narrador, que se declara cinquentão, é, de fato e por vocação, um bon vivant. Sua sabedoria (se ela existe) é extraída da existência que leva. E também da leitura atenta de Michel de Montaigne. Quando percebe que não fora contemplado com o gênio, como seu estimado Molire, consola-se com uma frase do pensador: "Minha arte e minha profissão é viver".
Enfim, não se pode dizer que O Doente Molire seja um grande Rubem Fonseca, à altura de alguns dos seus contos ou romances mais famosos como "Feliz Ano Novo", "Os Prisioneiros", "O Selvagem da àpera" ou "O Buraco na Parede". Este Molire traz a marca do texto de encomenda, aquele que não tem origem em qualquer necessidade interna do escritor, mas faz parte de um projeto de edição. É um bom divertimento, na acepção musical do termo - e no melhor sentido da palavra.