Round Six: esses coreanos e suas dívidas sangrentas

Embora diferentes, não é difícil traçar um paralelo entre as tramas do multipremiado e insuperável longa metragem "Parasitas" e "Squid Game/Jogo da Lula/Round 6". Ambos são histórias de sobrevivência em um mundo cruel e impiedoso. Se em "Parasitas" uma família pobre deve penetrar insidiosamente na mansão de uma família rica e se apossar de todos os seus bens, em "Round 6" centenas de cidadãos endividados de Seul decidem tentar a sorte em uma sangrenta competição, que dará ao vencedor um prêmio milionário, mais que suficiente para quitar todas as dívidas.

Mistura de distopia futurística e alegoria sinistra da sociedade contemporânea, o universo paralelo em que o protagonista se assemelha aos reality shows que povoam a televisão desde o início do novo milênio. Todos os despejados da cidade, desesperados por suas dívidas, acabam ancorados em uma ilha secreta, dentro de um imenso conjunto de registros labirínticos e compartimentados, onde são implacavelmente monitorados.

É claro que a série quer que o espectador veja seu discurso de que dívidas como fruto do capitalismo selvagem podem causar grandes problemas. Um dos personagens é um estudante de pós-graduação enterrado em dívidas. Outro tenta economizar dinheiro suficiente para resgatar seu irmão. Existem muitas pessoas enterradas por dívidas.

“Round 6” quer que você entenda que débitos são enorme problema em nossas vidas.

DÍVIDAS, NEOLIBERALISMO E NÚMEROS

Só para dar números muito reais à coisa. De acordo com dados de 2018 do Federal Reserve, os estadunidenses têm mais de US $ 1 trilhão em dívidas de cartão de crédito combinadas. E têm mais de US $ 2,8 trilhões em dívidas não rotativas (como empréstimos). Os espectadores podem testemunhar os problemas associados às dívidas desde o primeiro episódio. Eles podem ver problemas de jogos de azar, roubos e assassinatos. Depois do primeiro e do segundo episódios, que mostram a vida dos personagens e as dificuldades que eles enfrentam, não resta nada além de uma competição sombria em que pessoas morrem. Só.

O roteiro coloca a sociedade neoliberal das últimas décadas diante de um grande espelho. E é esse neoliberalismo que quer convencer com a ideia de que ganhar dinheiro é apenas uma questão de esforço e energia, através de um torneio selvagem onde cada um tem o que merece. Mas não é somente o neoliberalismo que aparece retratado, mas ainda a sociedade da imagem, a sociedade do controle. A série não é a primeira a trabalhar estes temas – “Jogos Mortais” e “O Show de Truman” –, jogando como diferença na balança moral diversos personagens, cada um representando um tipo de perdedor, de fracassado.

OS ERROS DE 'ROUND SIX'

Spoiler inocente: e de onde vem tudo o que vemos ? O jogo é apresentado por um grupo de milionários que gosta de assistir a uma Olimpíada sangrenta e os jogadores são apenas bucha de canhão para seu entretenimento. Os erros de "Round 6" são notórios. Vários episódios têm minutos de sobra, e mais de uma cena abusa de câmeras lentas ou close-ups redundantes. Seu resultado é debilitado, quase falido. A série poderia ganhar algum fôlego sendo mais curta e precisa. Ela se escora tão somente no estímulo (sempre brutal) de fazer pensar no absurdo da sociedade capitalista, na decadência de sua lógica de sobrevivência, descarte e humilhação. Nesse sentido, o sadismo que pontua a série quase fica acima da gratuidade. Como de resto uma abundante e insistente mistura de humor e melodrama, combinação de elementos com a qual o cinema coreano é quase imbatível.

Inevitável. Na Internet pululam no momento memes divertidos sobre a série – que, no entanto, não atenuam o que de fato ela é: um olhar macabro na psique sobre o que os humanos farão para sobreviver, e o que farão para se livrar das dívidas. Ela é ainda mais sombria porque há muitos personagens que preferem ver as pessoas ao seu redor morrerem para sair do buraco em que se meteram. E embora esteja classificado para maiores de 16 anos, já há casos de crianças que estão replicando as imagens mais impressionantes – embora sem desenlaces fatais.

Na Europa (Espanha e Bélgica) professores e psicólogos reportaram ocorrências violentas que chegaram aos pátios das escolas primárias. Fizeram circular uma carta afirmando que “as imagens transmitidas nesta série podem prejudicar gravemente crianças e adolescentes, que não têm o desenvolvimento crítico suficiente e necessário para distinguir a realidade da ficção”. No Reino Unido, a policia descobriu pelas redes sociais mensagens convocando para um jogo similar: o perdedor poderia receber na cabeça um disparo de arma de ar comprimido...que também pode matar.

No Brasil, a direção de uma escola em São José dos Pinhais (PR) enviou cartas aos pais alertando que crianças de 8 a 10 anos estavam assistindo à série indicada para 16 anos por trazer cenas de sexo e violência.