O Brasil parece ser o único país sem monarquia do mundo que possui dois reis: Roberto Carlos e Pelé. Dois reis populares coroados numa mesma época, um na música, outro no futebol. Nasceram com apenas cinco meses de diferença, um no interior do Espírito Santo, outro no interior de Minas Gerais.

Pelé fez 80 anos no final do ano passado. Roberto Carlos completa 80 anos na próxima segunda-feira, 19 de abril. Como parte das comemorações a editora Todavia está lançando “Roberto Carlos: Por Isso Essa Voz Tamanha”, biografia do cantor capixaba escrita pelo jornalista Jotabê Medeiros.

Jotabê começou a gestar o livro em 1986, quando trabalhava como repórter da Folha de Londrina e foi escalado para entrevistar Roberto Carlos que estava na cidade para fazer um show no ginásio Moringão. Desse dia em diante vem acompanhando o cantor em uma infinidade de ocasiões, shows, viagens e entrevistas em vários cantos do Brasil e do exterior.

Em “Roberto Carlos: Por Isso Essa Voz Tamanha” Jotabê aborda todas as fases da carreira do cantor que é considerado a “memória musical afetiva do povo brasileiro”. Da fase de cantor de Bossa Nova, passando pela fase de astro do Iê-Iê-Iê, até chegar ao ápice de cantor romântico capaz de derreter o coração de multidões e multidões.

Jotabê Medeiros: desta vez ele lança uma biografia que começou quando ainda morava em Londrina
Jotabê Medeiros: desta vez ele lança uma biografia que começou quando ainda morava em Londrina | Foto: Divulgação

Também aborda a fase final, quase pitoresca, em que Roberto Carlos processou meio mundo. Entre os processos está o caso de um cidadão chamado Roberto Carlos, com o nome Roberto Carlos registrado na certidão de nascimento, que foi levado à Justiça por abrir uma pequena empresa e colocar o nome de Roberto Carlos Imóveis.

A seguir, Jotabê Medeiros fala sobre o cantor que ocupa lugar cativo no imaginário popular brasileiro.

Roberto Carlos no 4º Festival de Música Popular Brasileira da TV Record, em 1968:    no período, a Jovem Guarda era uma febre nacional
Roberto Carlos no 4º Festival de Música Popular Brasileira da TV Record, em 1968: no período, a Jovem Guarda era uma febre nacional | Foto: Wilman/ Acervo UH/ Folhapress

Por que biografar um artista que processou todo mundo que escreveu uma biografia sobre ele?

Uma vez, o escritor Marcelino Freire disse em uma palestra sobre Roberto Carlos, comentando a proibição da primeira biografia sobre ele, que nós é que deveríamos processar Roberto Carlos. Disse ele: “Roberto Carlos se apossou de nossa sentimentalidade, ele sequestrou nossas emoções, manipulou nosso afeto pelo som de palavras ordinárias e lhes resgatou a grandeza”. Concordo com Marcelino, ele é isso aí. Fora esse fato de abdução sentimental coletiva, Roberto é de longe o maior cantor popular do Brasil. Canta há 69 anos, compôs 500 músicas, vendeu 140 milhões de discos, lançou cerca de 45 álbuns de carreira. Acho que somente esse currículo já o torna um objeto fabuloso para a historiografia, mesmo à revelia da vontade dele.

Como Roberto Carlos se transformou de astro do rock para cantor romântico mais popular do Brasil?

Roberto explodiu, e se tornou muito famoso, com uma expectativa de ídolo jovem em torno de si, uma imagem de transgressivo e até de rebelde. Mas ele não era nada disso, era o contrário disso. Com o esgotamento da Jovem Guarda, ele pressentiu, antes de todos de sua geração, que precisava encontrar um outro nicho de mercado que abrigasse seu trabalho e seguisse posicionando sua obra num lugar de destaque na MPB. Fez algum tipo de pesquisa antes, o que parece claro nos dois últimos discos dos anos 1960 e nos dois primeiros dos anos 1970. Com a chegada de dois homens da noite ao seu staff (Bôscoli e Miele), ele fez a transição gradualmente, intensificando-a nos anos 1980.

Muito se diz que a música de Roberto Carlos representa o “inconsciente popular brasileiro” ou “a memória afetiva musical brasileira”. O que isso realmente significa?

Roberto é um homem de origens muito modestas, veio dos extratos mais operários da população brasileira. Conforme ele ascendeu, foi se cercando de outros personagens da cultura do povo (Helena dos Santos, Pilombeta, Nenéo, Getúlio Côrtes) e extraindo deles uma contribuição inestimável à sua música. A ressonância desse trabalho de Roberto (que eu considero um trabalho consciente) o levou a maravilhar os ouvintes do proletariado e ao mesmo tempo assombrar os extratos acadêmicos da música, por assim dizer – eu falo aqui da Tropicália e dos concretistas. Augusto de Campos e Caetano Veloso reconheceram nele um elo entre dois mundos e buscaram aproximá-lo de sua esfera de influência.

Em “Roberto Carlos: Por Isso Essa Voz Tamanha” você demonstra que Roberto Carlos sempre procurou ter um controle obsessivo sobre sua obra e, principalmente, sobre sua imagem. Como você explica essa postura quase doentia do cantor ao longo das décadas?

Roberto cresceu junto com o estabelecimento da indústria fonográfica no Brasil. As mesmas estratégias que a indústria usou, exigiu dele, e algumas ele mesmo desenvolveu. Como se tornou muito cedo a galinha dos ovos de ouro daquele mercado, ele também buscou formas de usar o sistema para extrair dele benefícios pessoais. Com o tempo, creio que isso foi se tornando automático, com a entrada de personagens do alto comércio e altas cartadas – como, por exemplo, o empresário Marcos Lázaro. Outro motivo, eu creio, é o seguinte: ele desenvolveu os primeiros passos na carreira num ambiente de vale-tudo inacreditável. Forjavam-se inimizades nas revistas de fofocas, romances, orgias, amantes, mortes. Isso hoje pode ter sido potencializado na era da internet, mas naquele tempo levava um tempo para se restabelecer a verdade. Ele passou a encastelar-se para preservar a intimidade e isso foi potencializado com um distúrbio psicológico, o TOC, que ele só veio a diagnosticar muito mais tarde. Parte das obsessões dele deriva disso.

No livro você levanta a tese de que Roberto Carlos foi o grande propagador da música negra no Brasil entre as décadas de 1960 e 1970. Como isso aconteceu?

Não sei se foi o maior propagador, mas certamente se antecipou aos que fizeram uma transposição do universo da black music norte-americana para a cultura brasileira. Havia uma tese muito forte de que ele teria sido levado a isso por grandes artistas brasileiros que já transitavam nesse universo, como Tim Maia e Toni Tornado, mas Roberto, desde que passou a se apresentar nos Estados Unidos, no final dos anos 1960, começou a cultivar o hábito de assistir a shows no lendário Teatro Apollo, em busca das expressões da música negra. Chegou a obrigar a banda que o acompanhava a ir com ele. Teve genuinamente esse impulso acerca daquela música e buscou dar subsídios a ele.

Sendo uma personalidade famosa e extremamente popular, Roberto Carlos raramente teve um de comprometimento social ou político sobre o Brasil. Por quê?

É curioso, ele é de fato um homem refratário à ideia de ter total consciência sobre a vida social e política. Parece esquivar-se disso, embora muitas vezes tenha demonstrado vontade de influir nos processos democráticos – quando se engajou, por simpatia, na campanha de Antonio Ermírio de Moraes, por exemplo. Não se posicionou nem contrário nem favorável ao regime militar, no qual viveu seu auge. Mas foi bajulado pelo regime militar, o que foi considerado imperdoável por muitos ativistas da redemocratização. De vez em quando, ele é confrontado com uma questão relativa ao governo do momento, e consegue dar respostas generalizantes sobre todos eles. Mas é preciso sempre lembrar: é um homem conservador, de ideais conservadores. Sempre estará mais próximo de decisões que não impliquem grande mudança.

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Serviço:

“Roberto Carlos: Por Isso Essa Voz Tamanha”

Autor – Jotabê Medeiros

Editora – Todavia

Páginas – 512

Quanto – R$ 84,90 (papel) e R$ 49,90 (e-book)

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Ouça Detalhes, um dos grandes sucessos de Roberto Carlos.

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