Rita Lee gravou versão de "Volare" na despedida
Versão inédita do clássico da canção italiana soa como uma despedida da roqueira mais famosa do Brasil, falecida em 2023, somando-se a outras releituras
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segunda-feira, 17 de junho de 2024
Versão inédita do clássico da canção italiana soa como uma despedida da roqueira mais famosa do Brasil, falecida em 2023, somando-se a outras releituras
Ranulfo Pedreiro/ Especial para a Folha
O Ginásio do Moringão era o palco dos famosos em Londrina, nos anos 80. Quem não tinha dinheiro para o ingresso, ficava ali, esperando ao lado dos portões, pois a produção costumava abri-los no meio do show para lotar o espaço. Durante uma apresentação de Rita Lee, os portões foram abertos e a turma entrou correndo a tempo de vê-la levitando, içada por cabos de aço, acima do público, tocando uma flauta transversal. Estava voando.
Rita foi única e foi muitas. A frase pode ser um clichê, mas não é mentira. Fã das surpresas, guardou uma para a posteridade. "Voando", versão de "Volare" (Nel blu dipinto di blu), canção de Domenico Modugno, conquistou recentemente os ares com o poder de emocionar diferentes gerações - a música está nas plataformas de streaming. O clipe resgata momentos felizes de Rita e soa como uma despedida.
Consagrada no Festival de San Remo de 1958, "Volare" ganhou o mundo. Foi gravada por gente tão diferente quanto David Bowie, Dolores Duran e Ella Fitzgerald. Na versão de Rita Lee e Roberto de Carvalho, tornou-se uma bossa nova, ideal para a voz contida, mas repleta de sentidos. Ninguém esperava a novidade, especialmente um ano após a partida – Rita Lee morreu em 8 de maio de 2023.
Rita foi do rock à bossa nova. Fez o caminho inverso de outra cantora ousada, também de voz econômica: Nara Leão, que partiu da bossa nova para a Jovem Guarda. Ambas aproximaram extremos.
Se durante a Tropicália, com Os Mutantes, Rita já se permitia aventurar por misturas incomuns e provocativas - ancorada muitas vezes pela criatividade dos irmãos Duprat -, posteriormente encontrou em Roberto de Carvalho as soluções harmônicas para ampliar o escopo das próprias composições e conquistar novos públicos. Deixou-se encantar pelo pop romântico, fundiu Beatles à bossa nova e narrou uma obra famosíssima de Prokofiev, "Pedro e o Lobo", introdutória para o mundo da música clássica. Não importa o que fizesse, tudo soava como Rita Lee.
VERSÕES IMPROVÁVEIS
Já no primeiro disco dos Mutantes, em 1968, aparecem versões improváveis de "A Minha Menina" (do então Jorge Ben), além de obras de Gilberto Gil e Caetano Veloso. Tem até uma parceria de Humberto Teixeira (famoso por compor com Luiz Gonzaga) e Sivuca: "Adeus, Maria Fulô."
Pelo menos duas canções transformaram-na em personagem: "Rita Lee", gravada no LP Os Mutantes (1969); e "Rita Jeep", homenagem de Jorge Benjor, gravada em 1971, fazendo um trocadilho inspirado pelo jipe de Charley Fenley Jones, pai da cantora, filho de norte-americanos. O sobrenome Lee foi uma homenagem ao famoso general confederado Robert Lee, como a própria Rita narrou em sua autobiografia, lançada originalmente em 2016.
A discografia de Rita Lee dá várias dicas. Em Build Up (1970), o primeiro disco solo, traz versões de Georges Moustaki (Joseph) e Lennon & McCartney ("And I Love Her" ganhou uma modulação que obrigou Rita a alcançar agudos psicodélicos).
Uma influência nem sempre percebida é Raul Seixas. Rita interpretou o roqueiro no curta-metragem "Tanta Estrela Por Aí" (1992), de Tadeu Knudsen. "Bruxa Amarela" (Raul Seixas e Paulo Coelho) aparece no disco "Entradas e Bandeiras" (1976). Da mesma dupla, "Gita" ganhou versão no Acústico MTV (1998). Não bastasse, Rita Lee afanou Paulo Coelho como parceiro - "Cartão Postal", "Esse Tal de Roque Enrow" e "O Toque" apareceram no emblemático LP Fruto Proibido (1975).
MAIS BEATLES
Os Beatles também foram tratados com idas e vindas. Get Back (Lennon/McCartney) virou "De Leve" em Refestança (1977), LP gravado ao vivo com Gilberto Gil. "The Fool On The Hill" apareceu em "Bossa’n’roll" (1991). Até que, em 2001, Rita Lee lançou "Aqui, Ali, Em Qualquer Lugar", relendo Beatles em ritmo de bossa nova. Dois reencontros.
Foram paixões cíclicas. Uma das grandes ironias dos Mutantes estava em regravar sucessos do rock pré-Jovem Guarda. Os tempos estavam mudando radicalmente e a ingenuidade que consagrou Celly Campello como a pioneira do rock no Brasil já não fazia sentido. Gravada no disco Os Mutantes (1969), "Banho de Lua" foi revista por Rita com um arranjo de Rogério Duprat repleto de distorções, anunciando tempos novos e difíceis.
Não podemos esquecer que "Banho de Lua" foi uma adaptação de Tintarella di Luna, de Franco Migliacci e Bruno de Filippi. Sim, Migliacci foi justamente o letrista que fez parceria com Domenico Modugno em "Volare/Voando."
As muitas versões de Rita Lee já não obedecem ao tempo.