São Paulo, 16 (AE) - A poucos metros de sua escultura "Casco" (1999), o artista plástico Nuno Ramos reflete sobre a pantagruélica mostra que o Museu de Arte Moderna de São Paulo abre na terça-feira (18) , reunindo 15 peças produzidas entre 1987 e o ano passado. Qualquer outro artista estaria excitado com a abertura de uma retrospectiva aos 40 anos, mas Nuno parece desolado como o capitão Schackelton que inspirou Casco. Repetindo a tragédia de sir Ernest, que liderou a fatídica expedição do Endurance à Antártida, em 1913, o navio de Nuno encalhou. Vendo todas essas peças reunidas, ele acha que poderia ter feito melhor. Mas não espera que um pequeno barco como o James Caird, que salvou o Endurance, apareça no território indiferenciado do gelo museológico.
O próprio "Casco" de Nuno Ramos, uma gigantesca escultura em madeira e areia que reproduz o encalhe do Endurance
tem a resposta que ele procura, mas os artistas são assim mesmo. Estão sempre olhando na direção contrária dos pobres mortais. Isso, às vezes, cria um problema. Nuno não enxerga a própria dimensão de seu papel na arte contemporânea, reconhecido pelos maiores críticos brasileiros e estrangeiros. Já nos anos 80, quando ele trocou a filosofia pela pintura, a pintora e desenhista de origem suíça Mira Schendel afirmava que Nuno era o melhor artista de sua geração no Brasil. O tempo só fez confirmar sua profecia.
"Craca" em Veneza - Os europeus ficaram deslumbrados com sua Craca" na Bienal de Veneza há quase cinco anos, mas, ao retornar ao Brasil, ninguém queria abrigar a escultura, em que esqueletos de cães aparecem amalgamados com peixes e restos de outros animais, reduzindo o mundo a um grande e único fóssil. Finalmente instalada no Jardim das Esculturas, em frente do MAM, no Parque do Ibirapuera, a escultura vai ganhar nova versão para o Parque da Luz, mostrando que a obra de Nuno Ramos começa a ter aceitação fora do circuito das galerias e colecionadores de arte.
Outro exemplo dessa crescente popularidade é a encomenda feita pela prefeitura de Buenos Aires de uma escultura em homenagem aos mortos da ditadura militar argentina. Nuno venceu 700 outros candidatos com um projeto arquitetônico que refaz por oposição (invertendo exterior e interior) os abomináveis centros clandestinos de detenção, construções dentro de galpões em que presos políticos eram torturados. "A ditadura argentina chegou a ter 3 mil deles e isso faz pensar como era possível o funcionamento desses centros sem que os vizinhos soubessem o que estava ocorrendo lá dentro", comenta o artista, que criou, em 1993, outra peça tradutora de sua indignação contra a violência latina. Sob o impacto da chacina no Carandiru, em 1992, Nuno fez a instalação "111", prestando homenagem aos mortos com esse trabalho em que misturava cinzas de salmos queimados, paralelepípedos representando os presos e placas de metal com os nomes dos massacrados.
A rigor, a distância que separa esses comentários políticos sobre a violência e suas telas não é tão grande como se imagina. Nuno recorre ao conceito bergsoniano da memória da matéria para construir tanto suas instalações - e "111 não estará no MAM por falta de espaço - como seus quadros.
Território instável - Nesses quadros, a reunião de materiais como parafina, alumínio, espelhos, tecidos, borracha, plástico e tinta tem como propósito fazer o olho circular em busca de um porto seguro. Como observa um dos curadores da mostra, o crítico Rodrigo Naves, já os quadros de 1988, em que parafina e vaselina eram a matéria básica, "apresentavam territórios instáveis" e "revelavam uma gênese dos seres na aproximação de elementos díspares".
Citando uma frase do filósofo francês Bergson, Nuno resume a questão numa única frase: "A vida veio dar indeterminação à matéria." Bergson concluiu que a memória era independente do corpo e essa autonomia trouxe aos humanos um problema a mais. Humildemente agnóstico, como se define, filho de um comunista ateu, Nuno nega que a espessura real desses quadros tenha um propósito transcendental, como o de revelar o lugar oculto do sagrado. Essa "cadeia de atritos" entre materiais rudimentares tampouco reafirma os princípios da arte povera ou funciona como crítica à sociedade de consumo, como as sucatas de automóveis de Chamberlain. Ingênuo, esse pagão paulistano quer apenas reinventar o mundo.
Matriz monstruosa - No cerne desse mundo informe, segundo Naves, o espectador vai encontrar uma "matéria primeira
matriz monstruosa das aparências rudes que se manifestam na superfície, dispersas e desencontradas". Também curador da mostra, o crítico Alberto Tassinari diz que Nuno "unifica o que
sem a arte, permaneceria desunido". O artista faz isso sem negar o retângulo da pintura tradicional. "Tudo salta do quadro
mas também tudo nele se afunda, se amortece", observa Tassinari, que vê, em suas esculturas, o mesmo efeito na paralisia dos volumes.
Nuno acha que não faz bem nada disso. Nem pintura nem escultura. Faz porque descobre possibilidades enormes na arte. "Acho que minha geração redescobriu o ideal construtivo da geração dos anos 60", diz, analisando o papel da geração anterior como um papel defensivo. "As obras dos anos 70 são muito agressivas, elas mordem de volta", analisa. Talvez seja conveniente lembrar que essa foi a época de resistência ao regime e da arte conceitual, que expurgou a pintura da cena artística. Nuno, que formou com outros pintores (Fábio Miguez, Rodrigo Andrade, Paulo Monteiro e Carlito Carvalhosa) o Ateliê Casa 7, em 1983, pegou a onda neo-expressionista, que trouxe à pintura de voltas às galerias, mas a saturação da transvanguarda o levou a outros caminhos fora de seu grupo.
Esculpindo palavras - Um dos primeiros exemplos da fase autônoma de Nuno na retrospectiva do MAM é uma peça chamada "Coluna, de 1987, formada por colunas de madeira e sacos de tecido cheios de cal. Formatar o pó branco é como esculpir com palavras, utopia que Beuys - uma das referências do artista, ao lado de Anselm Kiefer - insistia em ver como pura realidade. Nuno insistiu na tese de Beuys e fez não só a coluna de cal como uma obra chamada "Vidrotexto (na mostra), em que escreve um texto com vaselina sobre vidro. Dono de uma escritura requintada
Nuno é um raro exemplo de artista capaz de circular da pintura para a escultura e da instalação para a poesia sem que o resultado seja precário.
Nessa direção, um dos mais poéticos trabalhos da mostra do MAM é Mácula", apresentado na Bienal de 1994. Todo mundo já ouviu mais de uma vez que o excesso de luz cega e Nuno, um intelectual, conhece os perigos da razão. A relação paradoxal é traduzida no confronto entre breu e sal , luz e escuridão. Um texto em braile, linguagem feita para o corpo, para o tato, é impresso num painel fotográfico que guarda o sentido original de mácula, mancha solar e ao mesmo tempo o lugar da retina que proporciona o milagre da visão. Com essas coordenadas, não é difícil chegar ao centro da peça.
Desenvolvendo a questão do tato, Nuno chegou às atuais esculturas em mármore, que abrigam vidro soprado com vaselina líquida em seu interior. A relação sensual entre os dois é mais ou menos óbvia. Nuno brinca. Diz que não é ingênuo, mas que seu trabalho é. "Gostei de ver na exposição do Rio pessoas simples dizendo que eram apenas pedras grandes e moles chorando." A exposição será inaugurada na terça e fica aberta até 19 de março
de terça a sexta, das 12 às 18 horas, às quintas, até 22 horas, e aos sábados e domingos, das 10 às 18 horas. Os ingressos custam R$ 5,00 e R$ 2,50 (estudantes e sócios do MAM). Entrada franca às terças e quintas, a partir das 17 horas, no Museu de Arte Moderna (Parque do Ibirapuera, portaõ 3).