Quando o mês de fevereiro se aproxima, o batuque do pandeiro já aponta lá no final da avenida e o tão tradicional samba ganha o seu destaque majestoso. Mesmo Londrina sendo um local predominado pelo gênero sertanejo, o Samba da Madrugada desafiou os acordes da viola e cravou o seu espaço pelas noites da cidade por mais de 10 anos, assim se tornou um dos eventos mais tradicionais da região.

Como já dizia Dorival Caymmi “Quem não gosta de samba, bom sujeito não é…” e o evento caiu no gosto popular, lotou diferentes espaços com mais de 40 mil espectadores ao longo de uma década com diversos artistas emblemáticos do cenário musical. Mas em dezembro, a festa que descobriu vários passistas em cada edição se despediu e um dos motivos foi a dificuldade em continuar sem incentivo e patrocínio, explica o produtor e idealizador do Samba da Madrugada, Michael Soares, 34, “Foi por muito cansaço físico, mental e financeiro. Realmente não tínhamos um apoio, nem um espaço onde poderíamos nos fixar, já que ele é pensado para entregar segurança e conforto, mas são poucos lugares assim em Londrina. Além de que alguns possuem um alto aluguel e isso acaba respingando no valor do ingresso para o público”.

Michael Soares, produtor do Samba da Madrugada: “Com a possibilidade do Samba se tornar Patrimônio Cultural, a volta dele foi decidida”
Michael Soares, produtor do Samba da Madrugada: “Com a possibilidade do Samba se tornar Patrimônio Cultural, a volta dele foi decidida” | Foto: Acervo pessoal

Muitos eventos enfrentam dificuldades para serem entregues ou mantidos, seja na parte financeira, burocrática ou de logística. A notícia do encerramento do Samba da Madrugada chegou até o vereador Fernando Madureira (PTB), 54, que protocolou um projeto de lei que pode denominar o Samba da Madrugada como Patrimônio Cultural de Londrina: “Ao ver que Londrina se identificou com o Samba e que ele fortaleceu o turismo local, já que pessoas das cidades vizinhas o prestigiam, notamos que são 10 anos de sucesso”, diz Madureira.

A votação do projeto está prevista para fevereiro e o vereador está otimista com o resultado: “O texto já está protocolado na casa, tenho certeza que teremos apoio o suficiente para que o PL seja aprovado e, em fevereiro. vamos acelerar para que ele possa fortalecer o Samba e garantir mais apoiadores”, completa o vereador. Com essa notícia e seguindo o forte lema de “não deixar o samba morrer", foi anunciado pelo produtor o retorno da festa, agora, abraçado e notado pela prefeitura: “Com a possibilidade do Samba se tornar um patrimônio cultural, a volta dele foi decidida”, diz Michael.

O evento além de realizar esse trânsito entre as regiões, também abriu portas e garantiu o palco para diversos artistas locais que encontraram na madrugada uma oportunidade de divulgar seus trabalhos. Músico e com anos de participação na festa, Rubens Borges dos Santos, 59, é a prova de que o evento é um ponto de encontro: “Para mim, ele surgiu como uma proposta de integração de artistas em rodas de samba na sua essência. Um resgate do samba raiz, todos lá varando a madrugada”, comenta. “O samba raiz é acima de tudo ,resistência , ‘a voz do morro’, como diz a letra, mas temos que continuar lutando e, caso se torne patrimônio, será um avanço”, explica o artista.

Como diz Roberto M. Moura: "Não é o sambista que forma a roda é a roda que forma o sambista."

SAMBA: AGENTE DE EDUCAÇÂO

O samba vai além do ritmo e potência musical, é também um agente da educação na vida de diversas pessoas que descobrem o mundo por meio das composições: “Cresci em uma casa onde praticamente não tinha livros, mas havia muitos discos e quase todos de samba. Escutei e aprendi muito com eles, principalmente os sambas de enredo, onde as escolas tratam sobre diversos temas. Lembro de ouvir sobre Carlos Drummond de Andrade no enredo de 1987 da Mangueira”, diz Juliana Barbosa, 48, doutora em Estudos da Linguagem, professora de comunicação da UFPR e produtora cultural.

Pesquisadora sobre o tema, Juliana, enxerga o samba como uma cultura, um jeito de ver o mundo e de se comportar, analisa que, além de quem toca, dança e canta o ritmo, os frequentadores também são parte fundamental. Para ela, “esses encontros nascem e têm como matriz a roda que é um formato agregador. “O samba é uma das maneiras estratégicas que o povo negro usa para trabalhar o fator identitário. Londrina é um terreno fértil para essa cultura porque tem uma série de grupos e músicos, por exemplo, o Samba da Padaria, que está há mais de 20 anos em atividade”, lembra Juliana.

Juliana Barbosa, professora da UFPR: " Londrina é um terreno fértil para essa cultura"
Juliana Barbosa, professora da UFPR: " Londrina é um terreno fértil para essa cultura" | Foto: Acervo pessoal

REVELAÇÃO DE SAMBISTAS

O Samba da Madrugada também revela grandes personagens em seus eventos, figuras carimbadas que já fazem parte da festa e dão sentido para toda essa representação. Um deles é o Mario José da Silva, 66, mais conhecido como Marinho ou Seu Mário: “O Marinho é uma personalidade que participou de todas as edições do Samba da Madrugada! É o primeiro a chegar e fica dançando até o final. O evento existe porque ele existe”, diz o produtor Michael que já vê Marinho como um padrinho da festa.

Além de Seu Mário que está sempre presente, Juliana mostra que sua paixão pelo samba vem do berço, sua mãe, Maria de Fátima dos Santos Barbosa, 72, a famosa Fatinha do Samba, é apaixonada pela música e já recebeu até título de nobreza em uma das edições: “Esse apelido da minha mãe foi dado pelo Arlindo Cruz, em 2007, em um oficina do Festival de Música. Buscamos ele no aeroporto e ele a chamou assim. Ela já recebeu a faixa de rainha do Samba da Madrugada e, penso que se for registrado como patrimônio, esse ato vai fortalecer e fomentar ainda mais essa cultura”, diz.

O Samba da Madrugada revela grandes personagens, como Marinho e Fatinha, ela ganhou o apelido de ninguém menos que Arlindo Cruz
O Samba da Madrugada revela grandes personagens, como Marinho e Fatinha, ela ganhou o apelido de ninguém menos que Arlindo Cruz | Foto: Allan Puzi/ Divulgação

Para o secretário de cultura de Londrina, Bernardo José Pellegrini, 65, o modelo de política cultural da cidade se movimenta para que a diversidade sempre tenha espaço, onde os trabalhadores da cultura conseguem propor mais festivais: “No teatro, na música, literatura, cinema ou nas artes gráficas, de um tempo para cá, cada vez mais essas populações que trabalham com linguagens nascidas no seio da periferia ganham mais força na cidade”.

A cultura de uma cidade atravessa diretamente a forma que a sua população se reconhece, valorizar as culturas que nascem organicamente em seu território é uma ótima maneira de manter vivo o interesse pela arte. Para o secretário, ainda falta para a cidade uma boa autorreflexão: “Londrina é uma cidade que às vezes quer se passar por europeia, quando na verdade não é. É uma cidade nordestina, preta e que traz toda uma complexidade que ganha contornos reais quando se expressa. O Brasil é um país marcado por essa cicatriz, pela destruição de culturas inteiras transplantadas da África para o Brasil, então tudo isso é uma luta”, observa Bernardo.

A volta do Samba da Madrugada é um sinal de que a arte popular realmente é uma das bases para a construção de uma cidade, pelas palavras do mestre Jorge Aragão, nota-se que “foi bom insistir, compor e ouvir, resiste quem pode à força dos nossos pagodes”.