Simone Mattos
De Curitiba
A musicista e escritora Kristina Augustin esteve em Curitiba lançando uma obra de caráter inédito no Brasil. O livro ‘‘Um Olhar Sobre a Música Antiga – 50 Anos de História no Brasil’’ conta a trajetória da música medieval, renascentista e barroca trazida da Europa pelos imigrantes, após o final da 2ª Guerra Mundial. A obra, com 129 páginas, é o resultado de um trabalho de mais de três anos de pesquisa.
Natural da cidade de Niterói, Rio de Janeiro, Kristina se dedica aos estudos e prática da viola de gamba desde 1984. Viveu cinco anos na Europa, tendo estudado o instrumento na Suíça, entre 1989 e 1992, sob orientação do gambista Paolo Pandolfo. Após dois anos de estudos com Sarah Cunningham, na Inglaterra, ela obteve o Licenciate Diploma of Birmingham Conservatoire, pela University Central of England.
Atualmente, é contratada da Universidade Federal Fluminense. Kristina também está desenvolvendo um projeto em parceria com a Secretaria de Estado da Cultura do Paraná, que deverá ser lançado na segunda metade do ano. Serão cinco cadernos de músicas, resgatando a história dos instrumentos antigos como o cravo, viola da gamba, rabeca, saltério, flauta-doce, flauta-transversa, alaúde e espineta. Durante o lançamento do livro em Curitiba, Kristina conversou com exclusividade com a Folha2.
Como foi o processo de pesquisa para a realização do livro?
A primeira parte foi feita na Europa. Como trabalho de final de curso, eu me propus a falar sobre o resgate da música antiga dentro da Europa. Quando eu terminei a monografia, cheguei à conclusão de que com a 2ª Guerra, muitos europeus vieram para a América e trouxeram a música antiga para cá. Para nós, esta é uma música totalmente importada, já que não tivemos música medieval ou renascentista, apenas um barroco ‘‘bem mais ou menos’’. Estas eram dúvidas que sempre me acompanhavam, portanto resolvi continuar o trabalho no Brasil.
Como começou o movimento da música antiga no Brasil?
Quando os imigrantes alemães e ingleses chegaram ao Brasil, começaram a fazer música em caráter amador. Desde os anos 30, havia quem tocasse Bach e Vivaldi, mas sempre de forma amadora. Eu considero que o marco tenha sido em 1949, quando o búlgaro Borislav Tschorbov veio ao Brasil. Ele era um dos 32 músicos convidados pelo maestro José Siqueira para vir formar a Sinfônica do Rio de Janeiro. O Borislav já saiu da Europa com a intenção de fazer um grupo de música antiga, ele é um marco neste início.
Qual a importância do maestro Roberto de Regina neste contexto?
Paralelamente ao trabalho do Borislav, em 1950, o Roberto de Regina já estava fazendo o seu trabalho vocal. Eu considero o Borislav um marco, mas o Roberto de Regina é o pai da música antiga, já que ele foi o primeiro brasileiro a aclimatar aquele repertório ao nosso País e à nossa cultura.
Como isso foi feito?
Até então, tudo era amador. Apesar do Roberto ser médico, ele percebeu que a música antiga ou histórica não era uma música embolorada, mas feita por compositores jovens, para um público jovem, era a música popular da época. Ele procurou então traduzir isto, dar um tratamento cênico, chamar a atenção para este repertório, mostrando que ele é alegre, vivo, moderno e colorido. Ele também foi um grande divulgador do cravo e o primeiro a construir cravos no Brasil.
Em que fase de seu trabalho surge a Camerata Antíqua de Curitiba?
Ele vem do Rio para Curitiba em 1974. A Camerata foi um grupo pioneiro. Em sua fase inicial, as vozes serviam apenas como adereços ao grupo instrumental, que ocupava grande parte do repertório. O núcleo era dirigido musicalmente por Roberto e a parte organizacional contava com a forte liderança de Ingrid Seraphim, que se desdobrava para conseguir apoio dos consulados alemão e italiano. Nesta época, o Instituto Goethe doou uma viola de gamba à Camerata... Se olharmos hoje a discografia da Camerata, podemos ver que é um dos grupos no Brasil que mais gravou Bach e Vivaldi, além de ser extremamente profissional. A postura e o acabamento do seu trabalho é impressionante.
A Camerata coloca Curitiba num patamar elevado quando se trata de música antiga no Brasil?
Sem dúvidas, é um excelente cartão de visitas. O Paraná foi o primeiro estado a perceber que a música é um ótimo cartão de visitas para qualquer lugar. A força da música é muito grande. Quando você não quer ver algo, por exemplo, é só fechar os olhos; quando você não quer falar, é só fechar a boca; mas a música não há como evitar, é impossível parar de ouvir, ela penetra em nós. Mesmo assim, eu acho que a cidade de Curitiba já teve mais coisas. Nos anos 80, houve um movimento muito grande com a Camerata, houve também um grupo de jovens chamado Renascentista de Curitiba, cuja idéia principal era criar um núcleo formador e de pesquisa de música antiga. Eram quase 50 alunos, sediados no Solar do Barão, que promoveram cinco encontros voltados à música antiga. Lembro que nesta época, em frente ao Museu Paranaense, sempre havia grupos de música tocando ao ar livre. Os eventos mobilizavam a cidade. Isto tudo acabou parando e se perdendo, e hoje só sobrou a Camerata. Curitiba nos anos 80 era realmente uma referência para todo o Brasil.
Qual o papel das universidades no processo de pesquisa da música antiga?
Elas nunca deram muito apoio, bem pelo contrário: sempre houve uma resistência muito grande, os acadêmicos sempre viram a música antiga com certo desdém. Atualmente este quadro está mudando, mas muito lentamente. Algumas universidades já oferecem graduação em flauta doce, por exemplo, aqui mesmo em Curitiba, em Porto Alegre e no Rio. A Unicamp também oferece graduação em cravo, mas fora isto é muito difícil. O meio acadêmico não aceita muito bem e os músicos não tem como se graduar.
O Grupo Camena de Música Antiga, por exemplo, não é ligado à Universidade da Paraíba?
É, mas os integrantes são professores, não alunos. E, pelo o que eu sei, as aulas que eles dão são de instrumentos modernos. Eu entendo a dificuldade financeira das universidades, mas tudo o que aconteceu até hoje no Brasil foi graças a iniciativa privada, o que não permite uma continuidade do processo. É preciso que haja uma institucionalização.
Qual é o público para a música antiga no Brasil?
Ele é pequeno, porque este é um tipo de música que foi feito para pequenas salas. Na época da Renascença, do Barroco, não existiam grandes auditórios. As músicas eram tocadas nas salas dos castelos, para poucas pessoas. Os instrumentos não têm volume sonoro muito grande, portanto, dependendo da acústica, não dá para se colocar um grupo de música antiga num teatro de dois mil lugares. Mas público há sim e esta música atinge todo mundo, pois é a música popular daquela época. Ela fala de amor, guerra, paixão, intriga, temas ainda muito atuais.
Qual é a dificuldade de se obter os instrumentos antigos?
Em relação aos anos 60, hoje eu já posso dizer que está mais fácil. Na época dos pioneiros, e é por isso que eu tenho tanta admiração por eles, era difícil. Às vezes, quando os instrumentos importados chegavam, eles estavam quebrados ou não funcionavam bem. Hoje, já existem vários construtores de instrumentos no Brasil, que cobram preços bem menores do que se os comprarmos na Europa. Eu sempre aconselho os jovens músicos que comprem os seus primeiros instrumentos no Brasil, para ver se é isto mesmo que eles querem.
Qual é a diferença entre se fazer música antiga com instrumentos originais ou com os modernos?
Sempre se fez música antiga com instrumentos modernos, foi este movimento que mudou isto, que mostrou que havia instrumentos específicos, que fez as pessoas pararem para pensar que quando Bach viveu não havia piano. O movimento busca exatamente que a música medieval seja feita com instrumentos medievais, que se tente buscar a linguagem e a estética da época. Eu não quero dizer que seja um absurdo tocar Bach no piano, mas é importante que se perceba que existe uma outra linguagem, um outro mundo, que se conheça bem o cravo. Assim, será possível conseguir um bom resultado no piano ou em qualquer outro instrumento moderno.A pesquisadora Kristina Augustin, que lançou um livro sobre música antiga no Brasil, fala sobre o desenvolvimento do gênero no país
José SuassunaJosé SuassunaJosé SuassunaKristina Augustin considera a Camerata Antíqua de Curitiba um grupo pioneiro do estilo no Brasil