Há uma analogia possível entre os cantores e compositores nordestinos que, na década de 70, aportaram na Região Sudeste, e a ‘‘nova MPB’’ que abriga Lenine, Zeca Baleiro, Chico César e Rita Ribeiro. As duas gerações mesclaram música pop com referências nordestinas, enfrentaram dificuldades para divulgar o trabalho e, por fim, conquistaram um espaço no disputado mainstream da música brasileira.
Mas, ao contrário de Elba Ramalho, Fagner, Zé Ramalho e outros, que foram parar no Rio de Janeiro, a geração mais recente desembarcou em São Paulo e absorveu o caldeirão rítmico que, há tempos, fervilha na cidade. Da Vanguarda Paulista ao rock e hip hop, esta turma assimilou um leque amplo e diversificado. Daí a origem da saturação de referências, do excesso de informação, da mistura rítmica, das citações melódicas e poéticas, da cadência eletrônica, das interferências dividindo espaço com arranjos acústicos.
O mais recente representante deste turbilhão a chegar ao CD é o cantor Zé Guilherme, que aparece com produção de Swami Jr. em ‘‘Recipiente’’. O título se refere a uma parceria de Maurício Pereira e Skowa e se encaixa com exatidão sobre o trabalho. Como na letra de ‘‘Recipiente’’, Zé Guilherme se coloca como um catalisador de influências que, processadas, se deslocam para o ouvinte com uma ótica particular.
É como receptor que Zé Guilherme empilha canções de origens diversas: do paranaense Carlos Careqa, que entregou-lhe a inédita ‘‘Mosquito Elétrico’’; dos nordestinos Lenine, Zeca Baleiro, Carlinhos Brown, Sivuca, Humberto Teixeira; e dos paulistanos Maurício Pereira e Arnaldo Antunes, entre outros.
Como vários cantores, Zé Guilherme saiu do nordeste – ele nasceu em Juazeiro do Norte, Ceará – para dar duro na noite paulistana até encabeçar seu próprio projeto. A produção, independente, ganhou respaldo da gravadora Lua Discos – que vem trabalhando com alguns bons nomes da música paulistana. O CD traz a participação de um grupo de amigos que também batalham por reconhecimento: o contrabaixista/violonista Swami Jr., o violonista Webster Santos, o acordeonista Toninho Ferragutti, as cantoras Ceumar, Sabá Moraes e Virgínia Rosa, o saxofonista Mané Silveira e outros.
O disco traz os poréns que costumam aparecer em trabalhos de estréia. A interpretação de Zé Guilherme ganha contundência em determinadas faixas, enquanto em outras navega num patamar menos profundo. Essa característica desarma uma possível linearidade.
As oscilações não chegam a comprometer. A voz do cantor aparece respaldada por bons arranjos. Embasados em naipe de sopros ou violões, o instrumental não apenas moldura a melodia vocal, mas torna-se elemento de destaque. A previsível ‘‘Miséria’’ (Arnaldo Antunes/Sérgio Brito/Paulo Miklos), por exemplo, cresce graças a um trio de trombone, sax e trompete.
Compositores em destaque como Lenine, Zeca Baleiro e Carlinhos Brown não decepcionam. O jeitão de novidade do repertório ganha oxigênio com ‘‘Jos钒 (Siba), ‘‘Mosquito Elétrico’’ (Carlos Careqa), ‘‘Compromisso’’ (Maurício Pereira), e ‘‘Caieiras’’, de Chico Salém. São, na grande maioria, canções que ainda não herdaram o ranço da evidência.
‘‘Eu quis juntar as influências, aglutinar várias fontes em um CD. Em alguns momentos tento um mergulho mais profundo, em outros, um mergulho mais superficial. O nordeste é muito rico em sonoridades, e durante muito tempo achavam que era só zabumba e xaxado. Eu tento mostrar que a música do nordeste também é mais contemporânea, com uma linguagem mais ampla’’, comenta o cantor, em entrevista por telefone.
‘‘Recipiente’’ reforça o discurso do crossover, da fusão, do amálgama sonoro em busca de uma linguagem própria, ainda por se definir. Aos poucos, a tendência vai eliminando os excessos em consequência de uma construção mais sólida, menos fragmentada. Mesmo sendo um disco de estréia, ‘‘Recipiente’’ acerta bem mais do que erra, respaldando positivamente as transformações que a MPB vem sofrendo nos últimos anos.