Na esteira do sucesso de público e crítica de ''Cidade de Deus'', filme lançado em agosto do ano passado e que poderá ser indicado, no próximo dia 11, como um dos 5 concorrentes para o Oscar de melhor filme estrangeiro, surge uma polêmica típica da realidade brasileira: é mais fácil apontar os problemas do que investigar suas causas, tentando identificar possíveis soluções. Logo depois da estréia, em entrevista para um jornal paulistano, o rapper MV Bill, um dos mais conhecidos moradores da Cidade de Deus, favela carioca que inspirou a ficção, já reclamava do tom pessimista adotado pelo filme, que ''não dá perspectiva nenhuma de melhoria para o futuro, nem traz esperança''. Enquanto o filme dirigido por Fernando Meirelles acumulava premiações, nacionais e internacionais, Bill lamentava que, na realidade nua e crua, a Cidade de Deus ficasse com um único prêmio: ''o de ser a favela mais violenta do mundo''.
As reflexões do rapper a respeito do filme que expôs tão duramente sua comunidade nas telas do mundo aprofundaram-se e assumiram, a partir do começo deste ano, um tom mais belicoso. Em sua coluna no site Viva Favela, MV Bill declarou guerra aos produtores e diretores do ''Cidade de Deus'' e, ameaçando com uma coletiva de imprensa para 6 de fevereiro, que acabou sendo adiada para o dia 27, avisou que o ''mundo inteiro'' ia ficar sabendo ''que esse filme não trouxe nada de bom para a favela, nem benefício social, nem moral, nenhum benefício humano''. Ao contrário, só fez intensificar o preconceito. ''O que vemos'', afirma o rapper, ''é que o tamanho do estigma que as crianças da comunidade vão ter de carregar pela vida só aumentou''.
Revelando-se surpreso com o pronunciamento de Bill, ''mais pelo tom do que pelo conteúdo'', o cineasta Fernando Meirelles mandou sua resposta de Los Angeles, onde se encontra para promover o ''Cidade de Deus''. ''O Bill tem razão ao dizer que o filme não ajudou a comunidade'', comenta, argumentando que ''essa seria uma tarefa para a qual não estaríamos preparados''. Contudo, não concorda com a visão do rapper de que o filme estigmatiza a comunidade. ''A população do Rio sabe que Cidade de Deus é um lugar violento'', afirma, ''não por causa da história que aconteceu nos anos 70 mostrada no longa, mas sim pelas 68 mortes violentas ocorridas no ano passado e noticiadas pela imprensa''. Portanto, acredita que ''não é um filme que deve ser combatido, mas sim essa violência cotidiana''. E aponta, como solução, a capacidade de liderança do próprio Bill, ''que pode e deve ser usada para reverter este quadro''.
Talvez tenha sido essa a estratégia que o rapper utilizou ao ''botar a boca no trombone'', já que, com a polêmica, representantes de ministérios, secretarias estaduais e municipais, amigos de primeira e última hora afluíram, pressurosos, para a favela, identificando demandas e apoiando projetos sociais, antes que os olhos do público se voltassem para outros interesses. Pena que, como Bill reconhece, essa movimentação em prol da diminuição da violência não se estenda para o Brasil, limitando-se apenas a uma favela chamada Cidade de Deus.