Quase aos 100 anos, Clint faz outra obra-prima
'Jurado Nº 2" estreia nesta sexta-feira (20) no Brasil, mas só no streaming, o que não deixa de ser uma pena
PUBLICAÇÃO
quinta-feira, 19 de dezembro de 2024
'Jurado Nº 2" estreia nesta sexta-feira (20) no Brasil, mas só no streaming, o que não deixa de ser uma pena
Carlos Eduardo Lourenço Jorge/ Especial para a FOLHA

“Jurado Nº 2”, o 40º filme dirigido por Clint Eastwood, estreia nesta sexta-feira (20) no Brasil, no Max. Mas lamentavelmente vai direto para o streaming, o que, convenhamos, é uma limitação ridícula, deixando a sensação de que certo tipo de cinema morreu definitivamente para as salas, e é hora de se acostumar – a estreia nos Estados Unidos não passou de 50 endereços.
Não se trata nem de saber se o diretor de “Mystic River” , “Menina de Ouro” , “Gran Torino”, “Os Imperdoáveis” e “As Pontes de Madison” (entre tantas outras preciosidades) merece uma distribuição mais ampla; é que esse tipo de thriller jurídico faturava milhões em tempos de plateias mais inteligentes, e agora parece pertencer somente ao catálogo de uma plataforma qualquer.
A priori, e na aparência, o filme não é um voo de largo horizonte do realizador de 94 anos, mas se levarmos em conta que ele vem vindo pelo caminho de muitas décadas de autêntica criação artística (atrás e na frente das câmeras), não é nenhuma tolice reconhecer a sua existência e persistência num mercado que está varrendo lendas, clássicos e até monumentos vivos do cinema. Porém, o filme não chama a atenção por ser uma conquista técnica, o que de certa forma é; mas por desafiar todos os filmes que Clint vem fazendo desde ‘Jersey Boys’.
Com uma narrativa simples, mas firme, “Jurado Nº 2” explora diferentes camadas de ética e justiça pessoal através do personagem Justin Kemp, interpretado por Nicholas Hoult, homem de família que se vê imerso em um dilema moral ao participar como jurado em um julgamento de assassinato de alto nível. A trama se complica, e muito, quando ele se dá conta de sua possível conexão com o caso de assassinato que foi encarregado de julgar imparcialmente. O réu, um homem violento acusado de matar a namorada, pode ser condenado injustamente, e a consciência de Justin é testada.
A trama transcorre principalmente no tribunal, onde se acumulam evidências e testemunhos que questionam os próprios fundamentos da verdade e da justiça. Não é a primeira vez que Eastwood chega aos tribunais. Aliás, este cenário não parece deslocado em uma trilogia judicial junto com “Meia-Noite no Jardim do Bem e do Mal” ou “Crime Verdadeiro”.
Por esta razão, “Jurado Nº 2” enquadra-se como nunca antes na sua filmografia e nas suas habituais complexidades morais baseadas num dilema tão simples, como se a justiça deva ser questionada sob o risco da própria ruína, ou se o Estado social é uma garantia suficiente para proteger os outros. Embora Eastwood não exponha uma evidente crise de valores, ele explora as possibilidades de um olhar mais cinza em sua habitual discussão em preto e branco, que sempre acabou prevalecendo sobre as questões mais mornas que ele próprio levantou.
A conversa final, diante de uma estátua da justiça com suas duas balanças, tem uma carga de poder implícita que aumenta quando sabemos que pode ser uma das últimas cenas filmadas pelo diretor, que ousa oferecer uma hisória na qual lamenta todos os verdadeiros heróis de sua filmografia, quando nos diz que falhar na justiça também pode ser a única solução, derrubando anos de retórica unilateral, de agitar os punhos contra as administrações do mal, reconhecendo os tons cinzas também do outro lado.
MAGISTRAL E MARGINAL
O Clint de agora, quase centenário, continua pessimista, moralista, convencido de que a morte governa os vivos – é a sua única esperança, de certa forma – e está disposto a mostrar um mundo atraente e contraditório. Resumindo: um cineasta que é ao mesmo tempo magistral e marginal em um mundo que cada vez mais recorre à TV para parar de correr ou de assistir. Aqui está um artista, Eastwood, que no crepúsculo da sua carreira nos convida a tomar consciência do valor da responsabilidade pessoal e dos limites da nossa liberdade.
Embora haja mínimos vislumbres da sua teimosia conservadora, como o fato de o alegado assassino ser publicamente julgado por violência de gênero, ou de muitos procurarem a sua culpa por motivações de vingança devido a conotações raciais, na realidade o que “Jurado Nº 2' parece nos dizer é que o procedimento não vale a pena para muitos cidadãos comuns porque é um incômodo que, na vida apertada da classe baixa, torna impossível a justa curiosidade, questionando também o sistema de júri popular e as organizações que exercem a influência para alcançar um resultado integral.
Finalmente , uma palavra de intenso louvor ao elenco. Todos oferecem atuações sólidas que reforçam o tom reflexivo do roteiro, que sempre volta atrás em seus próprios princípios e nas estruturas sociais que os regem. Por exemplo, Toni Collette é uma promotora distrital que busca uma vitória eleitoral ao custo talvez de uma vida inocente. É útil saber como este sistema eleitoral ganha força pelo número de condenados nos Estados Unidos, favorecendo as ações implacáveis dos órgãos supostamente garantidores do Estado

