60 anos atrás, em junho de 1960, chegava às livrarias um livro que perturbaria a literatura brasileira ao longo das décadas. Em suas páginas desnudava o Brasil com a seguinte frase: “A fome é uma nova escravidão”.

O livro trazia, pela primeira vez na história da literatura brasileira, um retrato da favela através de um olhar interno, o olhar de um habitante do lugar. A obra, “Quarto de Despejo – Diário de uma Favelada”, de autoria da estreante Carolina Maria de Jesus, em poucos meses vendeu mais de 10 mil exemplares, superando Jorge Amado com “Gabriela, Cravo e Canela” na lista de mais vendidos.

Quando lançou “Quarto de Despejo”, Carolina Maria de Jesus (1914 – 1977) havia completado 45 anos. Era moradora, desde 1947 da Favela do Carindé situada às margens do Rio Tietê, na cidade de São Paulo. Uma das primeiras favelas da cidade que seria extinta para a construção da Marginal Tietê em meados dos anos de 1960. Neta de escravos nascida em Minas Gerais, ganhava a vida como catadora de papel pelas ruas de São Paulo. Mãe solteira, cuidava sozinha de três filhos.

Tendo frequentado a escola apenas até o segundo ano do Ensino Fundamental, Carolina de Jesus gostava de literatura e lia tudo que encontrava pela frente. Ou pelo lixo. Em 1955 começou a escrever um diário sobre sua vida e sobre o cotidiano na favela, diário que manteve ao longo dos anos.

Em 1958 o jornalista Audálio Dantas, visitando a Favela do Carindé para uma reportagem, conheceu Carolina e teve acesso aos seus diários. Primeiro publicou uma reportagem sobre ela no jornal “Folha da Manhã”, depois na revista “O Cruzeiro”. Essas matérias o impulsionaram a ajudá-la na publicação dos diários em formato de livro.

Livro de Carolina de Jesus mostra a favela como um depósito de coisas e pessoas que a cidade não deseja mais
Livro de Carolina de Jesus mostra a favela como um depósito de coisas e pessoas que a cidade não deseja mais | Foto: Arquivo Público de São Paulo/Reprodução

“Quarto de Despejo” não traz o texto original escrito por Carolina em seus cadernos manuscritos, mas uma edição dos diários realizada por Audálio Dantas. O jornalista cortou parte dos textos, mudou alguma coisa na pontuação, mas preservou a ortografia e a gramática pautada pela oralidade utilizada pela autora. A edição mais recente do livro foi publicada pela editora Ática em 2017.

Logo nas primeiras páginas, a narradora exemplifica o título do livro: “Oito e meia eu já estava na favela respirando o odor dos excrementos que mescla com o barro podre. Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita com seus lustres de cristais, seus tapetes de ‘viludos’, almofadas de ‘sitim’. E quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo.”

Já em 1955, Carolina de Jesus apresenta a imagem de favela brasileira como um depósito de coisas e de pessoas que a cidade não deseja mais, ou não sabe onde jogar. Não apenas restos de madeiras ou sofás, não apenas restos de comida ou comida vencida, não apenas roupas velhas ou caridade, mas, acima de tudo, o descarte das pessoas pobres. O descarte da miséria para debaixo do tapete do País.

“Quarto de Despejo”, que compreende anotações de 15 de julho de 1955 a 1 de janeiro de 1960, é um testemunho sobre a fome, sobre a miséria absoluta. A narradora vive todos os dias da mão para a boca. Catando lixo, sobras e ossos. Toda a sobrevivência é conseguida não apenas no dia a dia, mas hora a hora, minuto a minuto, sempre desesperadamente.

Grande parte dos relatos envolve a dificuldade, ou a frustração, ou o desespero, para conseguir comida para os filhos. Uma das crianças, diante da fome chega a dizer: “Mamãe, vende eu para a Dona Julia, porque lá tem comida gostosa”.

“Quarto de Despejo” foi editado em mais de 14 línguas e publicado em mais de 40 países. Integrou a lista de leitura obrigatória para o vestibular de dezenas de universidades brasileiras. Mas tudo isso não salvou Carolina de outra miséria: o preconceito.

Após publicar o livro, a autora conquistou fama e dinheiro. Conseguiu sair da favela e ter aquilo que sempre desejou: uma casa de alvenaria num bairro de classe média. Mas tudo se perdeu quando publicou seu segundo livro, “Casa de Alvenaria – Diário de uma Ex-Favelada”, em 1961. Ninguém queria ler sobre uma ex-favelada negra num bairro de classe média de São Paulo. Então Carolina retornou à invisibilidade.

Após 60 anos de sua publicação, “Quarto de Despejo” demonstra que o País ainda escolhe não resolver seus problemas históricos, mas empurrar a miséria para debaixo do tapete. Quanto mais longe empurrar, melhor. Aquele lugar ideal onde miséria não deixe de existir, mas permaneça em total invisibilidade.

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. | Foto: Reprodução

Serviço:

“Quarto de Despejo – Diário de uma Favelada”

Autora – Carolina Maria de Jesus

Editora – Ática

Prefácio – Audálio Dantas

Ilustrações – Vinicius Rossignol Felipe

Páginas – 200

Quanto – R$ 41,90