Os personagens de Sofia Coppola vivem sempre presos em castelos, em hotéis, em internatos, em casas. Ou em casamentos. A realizadora, que há tempos deixou de ser apenas um promissor sobrenome ilustre, está de volta com uma história aparentemente distante do seu universo, mas que não poderia ser mais pessoal e próxima do seu cinema: “Priscilla”, filme baseado nas memórias “Elvis and Me”, de 1985, de Priscilla Beaulieu e Sandra Harmon, através do qual a esposa do mito pop americano conta um periodo da relação amorosa entre os dois.

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Depois de “Elvis”, cinebiografia assinada por Baz Lurhman, Coppola apresenta este conto completamente diferente. Não que complete aquela história, e nem esta seria sua intenção, pelo que se conhece de seus afazeres cinematográficos, mas porque aponta seu olhar para lugares onde outros diretores, homens, não pensariam em olhar. Na realidade, “Priscilla” é um conto de fadas aterrorizante, no qual uma jovem tímida da América profunda se apaixona por um homem bonito, mais velho que ela. Como qualquer adolescente com material escolar coberto com a foto de seu ídolo, seja um cantor, um ator de Hollywood ou um jogador de futebol, a menina de quinze anos fica atordoada porque o grande astro está olhando para uma adolescente comum, filha de soldados e em plena atividade escolar..

Coppola transforma seu filme em outra delicada narrativa ainda da safra “MeToo” (uma espécie de relato temporão) também através da história da esposa de Elvis. Dizemos que é apenas outra história, porque o que conta é o que todas as mulheres viveram em algum momento das suas vidas, não apenas as da geração dos anos sessenta. Existem hoje em dia relatos nas redes sociais de mulheres anônimas que falam da violência nos gestos do cotidiano, nos primeiros encontros, nos relacionamentos, no casamento ou no trabalho. Foi isso que sofreu essa menina que pensava que iria viver um conto de fadas e vivenciou um relacionamento tóxico com o homem mais famoso da América.

Com uma luz escura e abafada, de onde os tons pastéis parecem emanar melancolia, o diretor evita o brilho e o dourado, o kitsch inteiramente triste com o qual Lurhman envolveu a figura de Elvis. A diretora foca nos primeiros anos de relacionamento, que coincidem com a passagem da menina pela adolescência e minoridade, até a maturidade e decisão de fugir. Em sua essência, “Priscilla” é a história da libertação feminista. De uma consciência que já vimos em muitas outras histórias. No dia-a-dia desta relação, não vemos Elvis cantar ou atuar, isso está fora das telas. Ou aparece na televisão, ou nos jornais e revistas, que noticiam seu trabalho e sucessos sentimentais, ou nos fãs que esperam na porta da casa de Memphis. O que antes teria sido uma luminosa história de amor agora é uma história sombria. Por isso, Coppola opta por tons escuros, luzes opacas e cenários decrépitos. Assim como em “As Virgens Suicidas”, seu longa de estreia, “Priscila” é um filme repleto de simbolismo e pequenos detalhes e gestos de seus protagonistas.

Tal como em “Maria Antonieta”, a protagonista vive trancada, não num castelo, mas num casamento. Tal como naquele filme, “Priscilla” centra-se numa época, mas a transcende. Aqui não há conversa sob a anágua, mas há uma ligação temática com os dias de hoje, onde as práticas do patriarcado são questionadas cada vez mais fortemente e a partir de diferentes perspectivas e pontos de vista. Se em “As Virgens Suicidas” ela falava sobre os aspectos sombrios da vida juvenil, e em “Lost in Translation” sobre o declínio de um casal, em “Priscilla” Sofia Coppola investiga novamente esses temas, acrescentando fama, como em “Somewhere”, e as relações entre pais e filhos. e dá um tom triste ao conto de fadas onde os silêncios são quase mais importantes que os diálogos.

Através da jovem atriz Cailee Spaeny vemos a descrença e a decepção de uma garota que tem que aceitar que é o namorado quem decide como e quando ela faz sexo. Nunca, apenas até o casamento, enquanto estava com todas as atrizes famosas que podia, insistindo naquela ideia difundida de uma mulher pura como esposa e outras para diversão. O homem que encontra uma mulher para ficar em casa, guardando o forte, tendo filhos e se vestindo para ele. Frases e comportamentos que até recentemente considerávamos normais começam a ser questionados.

Nada fácil, com certeza, construir este filme, mas Coppola se saiu muito bem. Não só por causa do alter ego Priscilla (quem viu a série “Mare of Easttown”, de 2021, sabe que a garota é boa) mas também por causa de Elvis, um dos novos atores da moda, Jacob Elordi. De ascendência basca, ele apareceu bem apareceu na série de sucesso “Euphoria”. A realizadora disse que não queria semelhanças ou imitações, mas que em Elordi encontrou o carisma de Elvis. Com uma trilha sonora repleta de ótimas músicas, incluindo algumas de seu parceiro na vida, o músico francês Thomas Mars, líder do Phoenix, e com aquele olhar feminino, pouco ortodoxo, sincero e pessoal, Coppola mais uma vez foca na evolução de sua personagem, mais do que na própria história, e imprime um final emocionante que, espera-se, sirva a muitas mulheres.