A premissa do filme é a mesma de produções anteriores: uma forma hostil de vida que vai exterminando os tripulantes de uma missão espacial
A premissa do filme é a mesma de produções anteriores: uma forma hostil de vida que vai exterminando os tripulantes de uma missão espacial | Foto: Fotos: Divulgação



Mas o título correto não é este, alguém vai logo dizer. Tem razão. O personagem do ótimo drama psicológico inglês de 2011 é o disfuncional Kevin, que encaminha suas ações para um desfecho violento e trágico. E também nada tem a ver com terror espacial, o subgênero da ficção científica "Vida", em segunda semana de exibição na cidade. O título para este cinéfilo fiel, no entanto, começou a ganhar força no escuro da sala, diante do que desfila na tela. Não somente pela sonora simetria dos nomes dos dois personagens – o Kevin humano, de carne e osso, e o marciano Calvin, o letal passageiro da estação espacial – como também pela necessidade urgente de conversar sobre este "Life", filme oportunista, desprovido de personalidade e decididamente mal intencionado.

Clarificando as coisas: o roteiro de "Vida" usa e abusa de duas fontes, a ponto de engasgar e se intoxicar: "Gravidade", de Alfonso Cuarón, 2013, e "Alien, o Oitavo Passageiro" (Ridley Scott, 1979). Da primeira se apossa de todo o realismo dos planos exteriores e da ação interior na Estação Espacial Internacional, ambos em ausência de gravidade – o fato de que parte da equipe de produção havia trabalhado no filme de Cuarón em nada desculpa a apropriação. E do clássico de Scott basta dizer que "Vida" vem a ser quase um remake disfarçado, apenas mudados alguns detalhes e situações. Mas a premissa é a mesma: uma entidade alienígena desperta inocente, cresce e aparece terrível e vai causando estragos na Estação Espacial e dizimando seus cientistas-tripulantes.

Se o roteirista Dan O’Bannon ainda vivesse, os responsáveis por "Life", dirigido pelo sueco Daniel Espinosa (nada a ver com seu homônimo e filósofo holandês, particularmente quanto à ética...), iam dever muitas explicações a ele (e um bom punhado de dólares). É que os pontos de contato entre a história de 2017 e a que Scott realizou em 1979 são absurdamente muitos e evidentes. Em ambas uma missão espacial se vê exposta ao contato com uma forma hostil de vida extraterrestre, que termina ocultando-se na nave (a Nostromo, em "Alien") e que, em sua frenética luta para sobreviver em condições diversas de seu planeta de origem, vai liquidando um por um dos tripulantes. Ou nem todos: sobra a oficial Ripley (Sigourney Weaver), que passa de uma sequencia para outra.

Em "Vida", um monstro híbrido de estrela do mar com molusco que vai se deformando à medida que suas maldades aumentam
Em "Vida", um monstro híbrido de estrela do mar com molusco que vai se deformando à medida que suas maldades aumentam



Não é a primeira vez que o modelo Alien é replicado. De fato, a estrutura imaginada por O’Bannon é basicamente a mesma que ele havia usado na comédia hippie "Dark Star"(1974), FC de estreia de John Carpenter, um dos mestres na arte de enclausurar personagens lutando pela sobrevivência. O próprio Carpenter utilizou o mesmo argumento em "O Enigma do Outro Mundo (1982). De volta a "Vida", certos detalhes estabelecem diferenças tão sutis quanto irrelevantes, e que dizem respeito mais à forma que ao fundo. Enquanto em "Alien" se tratava de uma missão em espaço e futuro remotos, aqui a ação se traslada a uma estação espacial que orbita a Terra em um tempo que poderia ser o presente. Estas duas distâncias, a do tempo e do espaço, não são menores, já que a referida proximidade poderia traduzir-se potencialmente em maior empatia pelos protagonistas, enquanto os fatos se convertem em ameaça direta ao planeta.

"Alien" conseguiu ser particularmente bem sucedido em muitas direções, e uma delas foi a maneira como transmitiu a iminência do medo que seus personagens experimentavam: os sete tripulantes da nave se converteram para o espectador em um avatar da humanidade. Isto foi possível porque Scott teve a inteligência de permitir que em sua tripulação houvesse lugar tanto para o heroísmo como para a covardia, a nobreza ou a miséria, forjando uma gama de condutas que amplia o espectro do que é ser humano. Por sua vez, a tripulação de "Vida" (seis em vez de sete) está integrada somente por heróis. Todos em algum momento são capazes de pensar no outro antes de em si mesmos, fato que termina por se traduzir no heroísmo supremo de dar a vida pra salvar a humanidade. E de quebra Espinoza tem ainda a má ideia de sublinhar alguns momentos com uma banda musical óbvia e insistente.

Para sepultar de vez, se se imagina a coisa como uma guerra de criaturas. Em "Vida", um monstro híbrido de estrela do mar com molusco que vai se deformando à medida que suas maldades aumentam, mas que dificilmente causa terror à primeira vista. Em compensação, talvez não se repita na história do cinema uma monstruosidade com capacidade de aterrorizar e ao mesmo tempo fascinar como a criação que o suíço H.R. Giger realizou para "Alien". E além do mais, Espinoza nunca maneja o fora de campo (o que está fora da visão do espectador, mas cuja presença é pressentida) com a acuidade de Ridley Scott demonstrou em "Alien".