SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Glauco Mattoso está acordado. Perseguido pela insônia e por uma coleção de pesadelos, o poeta, ensaísta e tradutor paulistano vem há tempos fatiando o seu sono em períodos de duas horas. No meio disso, escreve. Compulsivamente.

Mas enquanto se multiplicam relatos em redes sociais de gente não que dorme por causa da pandemia do novo coronavírus ou pelas incertezas que assombram o Brasil sob o bolsonarismo, não é isso o que tira o sono de Mattoso -ou não só isso. "As pessoas estão experimentando o isolamento agora, mas vivo há décadas em uma espécie de prisão perpétua domiciliar", diz. "Nunca me adaptei à cegueira, acabei ficando muito recluso, nunca fui o cego autônomo que sai de bengala e cão-guia."

O mesmo glaucoma congênito que tirou definitivamente a sua visão em 1995, que fez com que ele conversasse ao telefone com a reportagem sentado em uma cadeira para ter referência espacial, que gera a dor nos olhos causadora das insônias e que aperta o gatilho para os sonhos ruins também fez Pedro José Ferreira da Silva adotar o nome artístico de Glauco Mattoso e, de certa forma, o empurra a escrever obsessivamente na véspera de completar 69 anos.

Parte dessa produção recente começa a ser escoada em um projeto literário iniciado no mês passado. Sem prazo para terminar, Mattoso pretende publicar um livro digital gratuito por mês, entre relançamentos de títulos seus já esgotados e outros inéditos -estes, compostos por poemas recém-saídos do forno, escritos enquanto o corpo dos acontecimentos e do noticiário ainda não pôde esfriar.

É o caso de "Molysmophobia: Poemas na Pandemia", lançado nesta semana e que compila cem sonetos produzidos de fevereiro a abril. "Insomne, escuto tudo o que, durante /a noite, em quarentena, a vizinhança /discute emquanto fode. Mais advança /a hora, mais punhetas me garante" é a primeira estrofe do poema "Vazias Phantasias", um dos que formam o título.

Feitos em uma linguagem própria, que gerou até um dicionário ortográfico pessoal que emula um português clássico, seus poemas não se limitam a cutucar comportamentos ou pôr o dedo na ferida da hipocrisia da vida em sociedade -deles escorrem punhetas, línguas que lambuzam pés, seres subjugados pelo sadomasoquismo, corpos incompletos que gozam fora do que é permitido no horário nobre da televisão.

"Nem sempre o sexo anal, de Satanaz /o coito predilecto, faz de tal /maneira a porcaria. Não te minto", escreve a certa altura em "Desfructe Não se Discute", poema do livro "Infinitilhos Excolhidos", lançado também gratuitamente em formato digital no mês passado. Nele, em vez de sonetos, Mattoso se debruça sobre outro tipo de poesia, que batizou de infinitilho, formada sempre por duas estrofes que rimam entre si.

"É como o repentista, as formas fixas me ajudam a memorizar", conta o poeta, autor de mais de 6.000 sonetos, todos devidamente numerados em seus arquivos (embora os mais novos entortem a forma clássica e sejam formados por quatro quartetos, mesmo assim são chamados de sonetos pelo escritor). "É o mais difícil, foi um jeito de me disciplinar."

É essa ideia disciplinadora que condensa toda a obra de Mattoso. Escrever sonetos, com o número certo de versos, as rimas no lugar e a quantidade de sílabas poéticas exatas, é difícil, gera sofrimento, produz certa dor --agonia que se manifesta também no sadomasoquismo sexual que recheia seus textos ou na cegueira de seu próprio corpo.

Não à toa todo o fetichismo irrompe em sua produção literária depois que o escritor fica cego, o que ajudou a carimbar o rótulo de poeta maldito em seu nome. "Sou um pós-maldito desconhecido, de quem as pessoas podem até ter ouvido falar, mas que ninguém leu", define-se, autor de mais de 50 livros e cujo nome foi cantado até por Caetano Veloso na música "Língua".

Mas bem antes de se ouvir na faixa do disco "Velô", de 1984, Mattoso já zanzava por aí. Nos anos 1970, em resistência à ditadura militar, editou o fanzine "Jornal Dobrabil" e colaborou com o Pasquim. Na década seguinte, se envolveu com a revista Chiclete com Banana e lançou o seu "Manual do Pedólatra Amador". Foi "queer" muito antes de a palavra se multiplicar e ser acolhida pela sigla LGBTQ.

Em 2012, após mais de 5.000 sonetos escritos, decidiu parar de fazer esse tipo de texto. Há dois anos, anunciou que iria se aposentar da vida artística --ou "pendurar as chuteiras sem batter as botas", como escreveu na ocasião.

Voltou atrás das duas decisões. "Acho que fui atacado pelo mesmo bicho que mordeu o Silvio Caldas, que fez vários shows de despedida e nunca se aposentava", diverte-se. "É um jeito de mostrar que podemos mudar de ideia." A troca de opinião fez com que seu livro de poemas "Graphophobia", lançado no mesmo 2018 em que falou da aposentadoria, ficasse entre os dez finalistas do prêmio Jabuti no ano seguinte.

Mattoso bate novamente na tecla dos poucos leitores e diz se surpreender em ter sido finalista do principal troféu literário do país. "Tem gente que ainda hoje nega gostar dos meus livros por causa da temática", conta. E como o cego Tirésias, espécie de profeta que aparece em textos da Antiguidade, de Sófocles a Homero, vaticina: "A caretice é cíclica, olha o governo que temos".

É que, além de escritor, queer e fetichista, Mattoso se define como místico. "Dizem que os cegos têm o poder da premonição, e eu concordo." Mistura de previsão e comentário, ele diz acreditar que a tendência autoritária só vai aumentar no país nos próximos meses. "Mas a censura traz também a transgressão", acrescenta. E acha que o mercado editorial brasileiro chegou ao seu xeque-mate. "A tendência é acabar o livro como conhecemos hoje."

Se o poder premonitório está muito ligado ao universo onírico, ele descreve que seus sonhos são sempre formados por imagens coloridas, como se pudesse enxergar mesmo depois de 25 anos cego. As cenas podem ser o indício de um futuro bonito, cheio de cores. Mas, ao mesmo tempo, também são elas que geram os pesadelos que impedem o poeta de dormir.

A interpretação vai depender do oráculo. Enquanto isso, Glauco Mattoso está acordado. E escreve compulsivamente.