São Paulo - Consumir assuntos atrelados à cultura diaspórica africana, afrofuturismo, figuras negras apagadas ao longo da história e relações raciais brasileiras pode ser uma atividade enriquecedora aos ouvintes de podcasts do Brasil, que é líder no ranking mundial de produção do setor, de acordo com dados da agência americana Voxnest de 2020.

A cada episódio de "Ficções Selvagens" - programa semanal criado pelo escritor Alê Santos e lançado em novembro -, o ouvinte é levado a uma nova distopia de ficção científica que tem como base a própria realidade contemporânea brasileira. As histórias mesclam, assim, uma série de desigualdades sociais a um intenso desenvolvimento da tecnologia digital, num futuro nada agradável.

Produzido pela Orelo, a obra é uma típica distopia que nos lembra o ensinamento de que nada é tão ruim ao ponto de não poder piorar. O primeiro episódio se passa no ano de 2229 e tem como ponto de partida o polêmico "O Presidente Negro", de Monteiro Lobato.

Nele, os personagens se misturam ao romance do escritor e vivem sob um Estado eugenista, aristocrata e conhecido por um "programa de esterilização de pobres, selvagens e degenerados". "A partir de narrativas negras de ficção, podemos humanizar as pessoas negras que o racismo tanto desumanizou ao longo da história", afirma Santos.

Segundo ele, assim como em "Pantera Negra" e outras obras de entretenimento, o programa se liga ao imaginário negro afrofuturista e surge a partir do desejo de inserir a experiência negra nos espaços culturais de ficção científica, que, segundo ele, são predominantemente brancos.

Entre as pautas dos podcasts há ficção em torno do afrofuturismo, música e conceitos filosóficos sobre o amor
Entre as pautas dos podcasts há ficção em torno do afrofuturismo, música e conceitos filosóficos sobre o amor | Foto: iStock

Assim como Santos, a escritora Morena Mariah também se inspirou no movimento afrofuturista para produzir conteúdos na internet sobre cultura africana e afro-brasileira. Seu podcast "Afrofuturo", lançado em maio, traz entrevistas e reflexões sobre teorias filosóficas, acontecimentos históricos e literatura.

"A minha tentativa é falar de assuntos perenes", diz ela. "Não quero falar [no podcast] de racismo porque o que está na nossa realidade já é uma distopia, uma destruição do nosso sentido de mundo enquanto povo negro."

Perspectivas culturais sobre a noção de tempo, o álbum visual "Black Is King", de Beyoncé, o Quilombo dos Palmares, filosofias sobre o conceito de amor sob perspectivas negras e muitos outros assuntos já foram pautas. Segundo ela, tais temas são pouco explorados porque "a narrativa hegemônica sobre negros fica sempre num lugar de tragédia".

Com o mesmo desejo de abordar o universo das temáticas negras além da mesmice - de narrativas sobre os horrores do racismo -, o "Vidas Negras", podcast do Spotify que é produzido pela Rádio Novelo e criado e apresentado pelo jornalista Tiago Rogero, também é mais um dos que imergem em conversas sobre trajetórias e obras de arte de personalidades negras.

Nomes como o a pesquisadora Djamila Ribeiro, colunista deste jornal, a cantora Linn da Quebrada, a escritora Sueli Carneiro, a ativista Anielle Franco, a cantora Teresa Cristina e as atrizes Luana Xavier e Zezé Motta já participaram das conversas do programa com episódios semanais.

Logo no primeiro episódio do podcast, lançado em novembro, somos levados a questionar o mapeamento genético da nossa ancestralidade e sua relação com a construção do povo brasileiro.

Diante do questionamento, tomamos então contato com as histórias de vida das escritoras Carolina Maria de Jesus, autora de obras como "Quarto de Despejo", de 1960, e "Casa de Alvenaria", de 1961, e Eliana Alves Cruz, autora de "Água de Barrela", de 2016, e "Crime do Cais do Valongo", de 2018.

"Óbvio que o racismo entra nessas histórias, mas no 'Vidas Negras' ele é só um elemento. O foco aqui é justamente celebrar essas personalidades e trajetórias tão importantes como essas", diz Rogero.

SERVIÇO:

FICÇÕES SELVAGENS

Roteiro: Alê Santos. Novos episódios às sextas-feiras na Orelo

AFROFUTURO

Roteiro: Morena Mariah. Novos episódios às quartas-feiras em todas as plataformas digitais

VIDAS NEGRAS

Roteiro: Tiago Rogero. Novos episódios às quartas-feiras no Spotify