A escritora, jornalista e feminista inglesa Angela Carter sabia disso, e Guillermo del Toro também. Sob cada conto popular (anônimo ou não) existe um pano de fundo de crueldade primitiva que vem à tona assim que sua superfície é arranhada um pouco. Assim como a autora do romance “A Companhia dos Lobos”, também adatado ao cinemna, o diretor mexicano dedicou boa parte de sua obra a nos mostrar esse fato, mas com objetivos diferentes.

Onde Carter inseriu o bisturi para dissecar os regimes disciplinares do gênero, del Toro busca intuições sobre o arquétipo do ser monstruoso (o que é, como vem a ser, por que o olhamos com cara de mau) e também nos alerta sobre o fascismo, suas tentações e seus perigos, tão em triste moda nos dias de hoje. Duas obsessões que já vimos em muitos de seus filmes, e que reaparecem com a clareza de sempre neste seu “Pinóquio” em lançamento na Netflix.

Da mesma forma, e como costuma acontecer, o trabalho sempre minucioso do realizador mexicano não só consistiu em distorcer elementos conhecidos ou acrescentar outros de sua autoria, mas também em voltar à origem (o romance sombrio e moralizante de Carlo Collodi) para nos lembrar que muitos de seus elementos seriam considerados impróprios para menores hoje. Basicamente porque em 1883, quando foi publicado, a morte e a violência eram presenças mais comuns do que hoje no dia a dia.

Assim, o “Pinóquio de del Toro” (e de seu codiretor Mark Gustafson) é uma criatura deformada e indesejada desde sua origem, aquela evoca muito mais o James Whale do “Frankenstein” original de 1931 do que a de Walt Disney de 1940. Justamente por sua inocência, o boneco não é uma figura adorável, mas um cataclismo com pernas prontas para tornar miserável a vida daquele Gepeto que, decrépito e bêbado, o moldou em plena embriaguez.

Como fecho de sua versao, del Toro transporta a ação para o Risorgimento (a tentativa de unificação da Itália até a ascensão de Mussolini e seus “camisas pretas”, outro período de exaltação nacional com resultados bem mais terríveis. Em parte pelo desejo de ser valorizado e reconhecido, em parte para conquistar o amor daquele pai que não o suporta, Pinóquio quer ser uma estrela, e o fato de seu objetivo o transformar em ícone da propaganda fascista não importa miuito para ele (não está começando).

Mas Del Toro ainda é Del Toro, e este filme ainda é um filme infantil que não considera as crianças idiotas. Assim, em suas imagens há mais espaço para poesia, humor e o relacionamento entre pais e filhos do que para horror. Equilibrando-se entre a vida e a morte, entre a fábula e o conto sobrenatural, o Pinóquio de del Toro às vezes leva pequenos escorregões: como alguns momentos musicais, mas que podem ser relevados. E sua narração nem sempre nos mantém alertas.

Mas o fato desta realização ligeiramente aquém de “O Labirinto do Fauno” ou “A Forma da Água” não a torna menos elogiável: o vigor de suas imagens é inegável e, como seu protagonista, o filme continua sendo uma pequena e estranha criatura digna de amor e maravilha.

Del Toro construiu um delicioso delírio visual com dimensão política perfeita (o próprio ditador Benito Mussolini aparece em uma cena macabra e satírica no uma vez). É obra que merecia ser vista na tela imensa, muito pela ambição bem conseguida de contar uma história sobre amor e vida como de sua narrativa pela técnica primorosa da animação em stop-motion.

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