Isaías Nascimento, 58, se destacou em um dos encontros realizados pelo Projeto Brisa pela manhã, na semana passada, na Casa do Bom Samaritano - Instituto De Promoção Social de Londrina. “Hoje o Isaías está saudosista em...”, o motivo da frase solta em meio ao grupo, são os diversos pedidos de música feitos por ele durante o sarau artístico.

Idealizado pela Fundação Cultura Artística de Londrina (FUNCART), o projeto “Brisa” é apoiado pelo PROMIC - Programa Municipal de Incentivo à Cultura - e tem o objetivo de promover a inclusão sociocultural e proporcionar às pessoas que estão em situação de rua ou em abrigos, acesso às diversas linguagens artístico-culturais. E, um dos espaços que está sempre no roteiro é o abrigo localizado na região central da cidade.

Silvio Ribeiro, coordenador do Projeto Brisa, com Isaías Nascimento, 58 anos, que gosta de cantar e ouvir músicas para relembrar  histórias de sua vida
Silvio Ribeiro, coordenador do Projeto Brisa, com Isaías Nascimento, 58 anos, que gosta de cantar e ouvir músicas para relembrar histórias de sua vida | Foto: Ana Carla Dias/ Divulgação

Além de pedir algumas canções que o lembrava de um passado pouco distante, Isaías que está em Londrina há 5 anos também levantou para dançar, ele diz que sempre gostou de música e é uma boa forma de relembrar histórias. “Sempre ouvi muita música, gostaria até de trabalhar com ela, eu tinha começado em outro abrigo uma banda de 3 ou 4 rapazes com violão, mas paramos porque fomos nos dividindo e cada um foi para um lado, mas gosto muito de música para dançar e cantar, seria legal entrar no ramo de dança ou somente estar junto para acompanhar ”.

Vindo do estado do Espírito Santo, mais precisamente da cidade de Linhais, ele já viveu em diferentes lugares, conheceu também diferentes abrigos em Londrina. “Sou capixaba, lá é um lugar muito bonito, banhado pelo mar”, sua especialidade é cozinhar, conta que por onde passou deixou fãs de seu tempero e práticas na cozinha, “Eu trabalhei um bom tempo na área de confeitaria com doces e salgados, na cozinha eu não fico muito para trás não. Quando passei pelas repúblicas, eles só queriam que eu ficasse na cozinha, mas não dava porque sempre era escala e não podia sobrecarregar. Uma vez fiz uma panela gigante de doce de banana e não sobrou nada, levaram até para casa, faço várias receitas por onde passo, doce de abacaxi, de maçã”.

Não é por estar no abrigo que esses indivíduos são "sozinhos", Isaías fala de sua família e também dos amigos que possui espalhados pelo Brasil, a memória afetiva além de pedir por canções, relembra relações que sentem falta de um abraço, “A maioria dos meus parentes estão no Espírito Santo e uma irmã que mora em Jacarepaguá (RJ), mas tem muito tempo que não a vejo, já tem até filhos criados”.

São muitas histórias encontradas em alojamentos de quem está há um tempo sem moradia, mas abriga em si tantas histórias que apenas uma manhã de apresentações não consegue dar conta.

“Antes eu fiquei no Sabará, por último eu fiquei naquele do centro, depois vim para cá.” Isaías já morou no Rio Grande do Sul, viveu por um tempo em Santa Maria, mas gostou bastante de Londrina. Está em busca de um emprego para conseguir um lugar seu, “É muito bom porque dá uma animada na casa e, às vezes, encontra uma pessoa que sabe cantar ou tocar um violão, até mesmo dança, sempre tem uns que surgem bem animados”.

TROCAS

A Casa do Bom Samaritano é destinada ao público masculino e também portadores de deficiência, é referência aos que necessitam de uma maior permanência no acolhimento da instituição, enquanto buscam por empregos, tratamento médico, acompanhamento psiquiátrico, retorno familiar, entre outros.

Coordenador da Escola Municipal de Teatro de Londrina, FUNCART, e também coordenador geral do Projeto Brisa, Silvio Ribeiro, 55, está a frente da organização a quatro edições. “Começamos antes da pandemia, durante a pandemia fazíamos a distância através de transmissão de vídeo e esse ano voltamos de forma presencial. O Brisa é um sarau artístico para os moradores de rua, fomos procurados pelo Centro Pop para promover essa ação cultural e a primeira ideia foi essa da troca, poder dar acesso a eles sobre o que é produzido na cidade, também da gente escutar. Eles sempre acabam se soltando e cantam, esse sarau sempre estabelece essa troca”, o que se destaca é a abertura de possibilidades que esses eventos trazem, um respiro e esperança ao olhar para o presente e esperar um futuro com mais qualidade e humor. A gente prepara um espaço de acolhimento e de conforto para que eles se soltem e é natural, quando eles sentem a oportunidade eles acabam se expressando, até quando pedem as músicas e aquilo traz alguma lembrança, isso também é uma forma de expressão deles. Eu penso que precisamos entregar nem que sejam essas duas horas de alegria nesse momento da vida em que eles estão, não me importa o porquê estão aqui ou como chegaram, mas se nesses 60 ou 120 minutos fazer com que eles consigam abstrair e sentir um pouco de felicidade já é o que basta, já é o combustível para continuarem”.

Além de receberem músicos, dançarinos, proclamadores de poesia e diversos artistas que entram em parceria com o projeto e instituições, se descobre artistas que estão ali dentro e também soltam a voz. “A arte e a cultura sempre têm essa função de alegrar, contar, trazer saudades e dar reflexão. Tudo isso acontece e já vimos vidas se transformarem, desde a primeira edição, vemos pessoas que estavam na rua e, por conta do projeto, se descobriu dentro do teatro ou em outras atividades e, quando alguém mostra esse interesse, temos condições de encaminhá-la, existe essa possibilidade também de mudança de vida”, diz Silvio.

PAULO GOSTA DE ROCK, ANTÔNIO DE POESIA

Paulo da Fonseca Broca, 54, nasceu em Florestópolis, é formado em filosofia e também já chegou a dar aulas de música, canta Led Zeppelin durante o sarau de apresentações. “Estou há mais ou menos dois meses no albergue, estou aguardando a realização de uma cirurgia.” Amante do rock 'n roll, os amigos do albergue já gritavam para ele ir cantar, assim que o microfone ficava vago. “Acho fabulosa essas apresentações a arte é necessária demais, sorrir sempre é melhor do que chorar, fico feliz com a presença deles, espero que voltem mais”.

Paulo da Fonseca Broca, 54 anos, adora rock'n roll e os amigos do albergue gritam para ele cantar sempre que o microfone fica vago
Paulo da Fonseca Broca, 54 anos, adora rock'n roll e os amigos do albergue gritam para ele cantar sempre que o microfone fica vago | Foto: Ana Carla Dias/ Divulgação

Desde os capixabas até os mais interioranos, os hóspedes do abrigo carregam consigo olhares que melhoram ainda mais apresentações, indivíduos cheio de histórias e vivências que hoje estão na busca de um lugar para se abrigar e encontraram ali na Casa do Bom Samaritano um local para se assegurar de que a vida sempre reserva inúmeras chances que garantem uma trajetória que vale a pena.

O Coordenador de Produção, João Ribeiro, 29, estava comandando o som e disponível para os pedidos musicais de quem estava presente, e foi desde a moda de viola, samba raiz e o rock'n roll. As músicas iniciavam e eles contavam as suas histórias, “essa me lembra meus tempos na lavoura”, “essa é para mostrar que esse país possui uma política ruim”, “essa me lembra meus tempos jovem nas discotecas”, são trilhas sonoras de filmes verdadeiros e baseados em fatos mais do que reais, além de terem sido vivenciados são lembrados por quem valoriza um tempo onde estava mais próximo da família e de amigos.

"QUERO IR PARA A TELEVISÃO"

Dono de uma voz inconfundível, Antônio Rocha Filho, 57, aproveitou como ninguém a manhã de apresentações para recitar poesias e cantar. “Possuo um repertório muito grande, eu canto mais de 600 músicas, gostaria muito de um apoio para que

alguém me levasse para a televisão, também mando áudios de salmos da Bíblia e sempre estive envolvido com música, Deus me deu muita sabedoria, eu sei a Bíblia quase inteira. Os projetos culturais são bons demais, ajudam a gente a distrair, fico emocionado sempre”.

Antônio Rocha Filho, 57 anos, tem uma voz inconfundível, além de cantar - seu repertório tem mais de 600 músicas - também recita
Antônio Rocha Filho, 57 anos, tem uma voz inconfundível, além de cantar - seu repertório tem mais de 600 músicas - também recita | Foto: Ana Carla Dias/ Divulgação

Para Antônio esses encontros são momentos que trazem leveza para o corpo e para a mente já que, com a dança e descobrindo o gosto musical de cada um, as histórias vão ganhando ainda mais significado e subjetividade, o indivíduo é muito mais do que o que produz e o seu endereço, é tudo o que viveu, sua relações e suas saudades. “Faz uns 6 anos que estou aqui, o último [abrigo] foi no interior de São Paulo, vim para cá porque precisei realizar algumas operações, a convivência aqui é maravilhosa, os profissionais são ótimos, é lógico que estou em busca de um lugarzinho meu para morar”.

OLHAR ARTÍSTICO

Com um olhar artístico na busca por captar todos os sons sejam da música ou dos risos que ocorrem na roda de apresentações Letícia Pocaia, 28, faz parte da equipe que roda Londrina para dar essa sensação de abrigo a quem está em busca de um lar, “Entrei no projeto oficialmente esse ano, nas outras edições eu participei como artista de teatro e produtora para alguns grupos da cidade que se apresentaram, agora estou na produção e comunicação do projeto”, sempre envolvida na cena cultural de Londrina, conheceu o projeto Brisa e seus coordenadores. “Fui me envolvendo e reconheci no Brisa uma proposta diferente dos outros por ser voltado a população de rua”.

Silvio Ribeiro com Letícia Pocaia que faz parte da equipe que roda Londrina em busca de pessoas que precisam de abrigo
Silvio Ribeiro com Letícia Pocaia que faz parte da equipe que roda Londrina em busca de pessoas que precisam de abrigo | Foto: Ana Carla Dias/ Divulgação

Toda a alegria durante as apresentações se inicia com um pouco de timidez e atenção aos discursos, o público encontrado no abrigo não é sempre escutado e socialmente não encontra esse respeito em todos os cantos, pessoas que muitas vezes sofrem diversos tipos de preconceito, reunidos para se relacionar com seu lado mais afetuoso e resgatar um olhar de autoestima e dignidade. “No começo, vejo que eles ficam assustados e com receio, mas também é o fato de ser um público muito estigmatizado, né? É algo de fora que vem, agora com o Brisa vindo várias vezes isso ameniza. Tivemos edições em espaço aberto no centro de Londrina, foram ótimas as recepções. Quando nos encontramos fora do projeto, eles sempre lembram da gente, é uma recepção recíproca, a gente dança e canta junto deles, isso abre o nosso diálogo para além de estar só no dia a dia, mas vivenciar com eles um pouco da realidade”.

O projeto Brisa e toda a equipe cultural possui a capacidade de ampliar a ideia de morada, lembrando que o respeito e a esperança também devem estar presentes em todas as locações, a arte e a cultura chegam para serem outras companhias na rotina, são hóspedes curiosas e reveladoras que transformam qualquer ambiente onde ainda há esperança social.