Quando Rita Lee tomou a segunda dose da vacina de covid-19, no começo de abril de 2021, não ficou bem. Passou a noite tossindo e escarrando uma estranha gosma marrom. No dia seguinte foi ao hospital e realizou um raio X do pulmão. Como estava pesando 37 quilos, o médico indicou internamento para mais exames e avaliação de especialistas.

No dia seguinte recebeu a notícia que estava com um câncer de vinte centímetros no pulmão esquerdo. Dois maços de cigarros por dia ao longo de décadas chegavam como fatalidade. Recebeu estimativa de vida de aproximadamente quatro meses. Nomeou o câncer de Jair.

Num primeiro momento, vislumbrou a eutanásia como solução adequada, pensando no sofrimento que sua mãe enfrentou no tratamento do câncer tempos atrás. Num segundo momento, resolveu que a decisão sobre o tratamento deveria ser de seu companheiro, Roberto de Carvalho, e de seus três filhos.

Rita acabou aceitando o tratamento e no processo resolveu escrever uma continuação de sua autobiografia publicada em 2016 pela editora Globo, “Rita Lee – Uma Autobiografia”.

Esticando sua estimativa de vida com o tratamento, em abril de 2023, Rita Lee marcou o lançamento de seu novo livro, “Rita Lee – Outra Autobiografia”. Agendou para o mês de maio, exatamente para o dia 22. Mas não consegui esperar, falecendo no último dia 8 de maio.

Lançado pela editora Globo, a obra acaba de chegar às livrarias já na lista dos livros mais vendidos do país na pré-venda. O leitor que desejar encontrar histórias do passado da cantora, como as presentes em sua autobiografia anterior, não vai encontrar uma linha.

Em “Rita Lee – Outra Autobiografia”, a compositora relata exclusivamente sua vida nos acontecimentos entre 2021 e 2022, os últimos dois anos de sua existência. Partindo do dia em que recebeu o diagnóstico de câncer até poucos meses antes de falecer.

A RELAÇÃO COM A MORTE

A relação de Rita com a doença, e com a proximidade da morte, ocupa praticamente todo o relato. Não uma visão lúgubre ou de autopiedade, mas um relato carregado de humor, sarcasmo e ironia. Uma mulher de olhos bem abertos diante da velhice e da morte: “Ficar velho é um sentimento de missão cumprida e comprida. Sei que estou mais perto da morte do que jamais estive, mas não sinto meu coração apertar de medo, e sim que vou deixar meu corpo físico e partir para o desconhecido do qual também não tenho medo.”

A superação da vaidade e o exercício de entendimento do corpo surgem em vários momentos do relato. Rita chega se olhar no espelho e ver, com humor, “uma galinha velha que não pode dar mais nenhuma canja”. Mas, logo em seguida, é capaz de reconfigurar o olhar para o tempo presente: “Na frente do espelho vejo uma velha à beira do leito de morte, esquelética, despenada e frágil, que se durasse um mês seria muito. Longe do espelho, era uma delícia, pois um ‘côté’ masculino, mais prático, vinha à tona. Dane-se o visual, entrar no chuveiro e receber uma cachoeira de água quente na cabeça careca e cerimoniais de cura com ervas, esse prazer era impagável, e eu secava a cabeça em apenas um minuto com a toalha.”

Em “Rita Lee – Outra Autobiografia”, a cantora expõe sua relação com a doença, não apenas sob a perspectiva da morte que se aproxima, mas pela perspectiva da vida que ainda lhe resta: “Quando digo que me dei conta de estar velha, falo não apenas da aparência, mas principalmente da existência em si. Estou vivendo uma fase especial, cheia de perguntas, e tenho a sensação de estar grávida, de me autoparir feito cobra quando abandona a pele antiga e outra renasce ainda mais poderosa.”

Entre fraldas geriátricas e outras coisas mais, Rita possui o espírito em detalhar percepções simples: “Quando você fala que está com câncer, a pessoa geralmente fica séria e não sabe o que dizer. Eu também agia assim. Ainda é uma doença tabu porque no passado o tratamento era uma câmara de tortura e muitas pessoas morriam com dores lancinantes que nem um litro de morfina por segundo seguraria a barra. Não tive nenhum dos efeitos colaterais do tratamento, a não ser a queda de cabelo. O que ninguém comenta abertamente é a vergonhosa flatulência que vem quando você menos espera. Para não ficar um climão, já me denuncio: fui eu, acabei de soltar um pum.”

O relato de Rita Lee possui uma sinceridade extrema. Entre todas as dores, seja diante a morte, seja diante do sentido da vida, tudo aparece de maneira direta, sem subterfúgios e com a aura da ironia. Um exemplo explícito de anti-hipocrisia.

Na última página do livro, na última frase, como um código nebuloso, Rita deixa registrado palavras enigmáticas: “Sua solução de vida deveria ser adotar um cachorro, um gato ou outro bicho que esteja precisando. E sinta o que é ser amado de volta.”

Imagem ilustrativa da imagem 'Outra Biografia': o último testemunho de Rita Lee
| Foto: Divulgação

SERVIÇO

“Rita Lee – Outra Autobiografia”

Autora – Rita Lee

Editora – Globo

Páginas – 192

Quanto – R$ 64,90 (papel) e R$ 44,90 (e-book)

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