Os usos e abusos do poder, em visão documentária
"Trilha Sonora para um Golpe de Estado" entra em cartaz no Cine Ouro Verde na segunda-feira (21); o filme mistura política e jazz
PUBLICAÇÃO
quinta-feira, 17 de abril de 2025
"Trilha Sonora para um Golpe de Estado" entra em cartaz no Cine Ouro Verde na segunda-feira (21); o filme mistura política e jazz
Carlos Eduardo Lourenço Jorge/ Especial para a FOLHA

Apresentado no Festival de Sundance 2024, onde ganhou o Prêmio Especial do Júri por sua inovação cinematográfica, “Trilha Sonora para um Golpe de Estado” (Soundtrack to a Coup d’Etat), em lançamento em Londrina na segunda-feira (21), no Ouro Verde, conta aquela velha história conhecida. Como o título sugere, o golpe de Estado na República do Congo não se baseou apenas nos instrumentos tradicionais geralmente usados nesse tipo de operação política dita "secreta" – apoio aos oponentes do regime, compra de legalistas por meio de grandes somas de dinheiro, fornecimento de armas a futuros "rebeldes” – mas também em meios muito mais insidiosos: o 'soft power cultural.'
Para ser mais específico: o poder da música, do jazz e do blues, e de seus grandes intérpretes na época e em todos os tempos : Dizzy Gillespie, Thelonius Monk, Nina Simone, Ella Fitzgerald ou o próprio Louis Armstrong, nomeado pelo Departamento de Estado dos EUA como "embaixador plenipotenciário do jazz", cujas visitas musicais ao Congo serviam para extrair urânio e contrabandear armas. Embora Satchmo percebesse que estava sendo usado para minar o regime de Patrice Lumumba e ameaçasse não apenas expor o engano, mas até mesmo renunciar à sua cidadania americana, a operação já estava em andamento muito antes, sem o conhecimento do trompetista.
GUERRA FRIA
O roteiro, escrito pelo próprio diretor, o veterano e multipremiado documentarista belga Johan Grimonprez, conecta os eventos históricos e políticos que cercam a ascensão esperançosa e o colapso repentino do regime progressista de Lumumba (também um lider anticolonialista) com a popularização da música afro-americana, seus compositores e intérpretes que, sem saber, foram usados pela CIA e pelo governo dos EUA como parte de uma estratégia de penetração cultural, especialmente na África e mais especificamente no Congo, devido aos enormes depósitos de urânio do país, um elemento fundamental em meio à Guerra Fria.
Dessa forma, o editor Rik Chaubet alterna as vozes e presenças desses grandes artistas (Armstrong com seu "Black & Blue" ou seu "I'm Confessing") com um relato meticuloso do cenário político global da época (o nascimento do movimento Não-Alienados) com as peculiaridades históricas do Congo e a carreira ascendente de Lumumba, e tudo isso com os depoimentos diante das câmeras de ex-agentes, espiões e mercenários ocidentais que narram com total honestidade (ou descaramento, o espectador escolhe) o que fizeram para derrubar um regime que atrapalhava seus superiores nos corredores do poder, nos palácios do governo, nos salões dos grandes negócios.

POLÍTICA E JAZZ
Mas o título vem de outro lugar, já que a trilha sonora toca em ritmo de jazz, usando como desculpa um evento inesperado que se seguiu ao assassinato de Lumumba: dois músicos, a cantora Abbey Lincoln e o baterista Max Roach, invadiram uma sessão do Conselho de Segurança da ONU para protestar contra o assassinato. A partir daí, o filme de Grimonprez mistura história e música, política da época e jazz, para oferecer um mosaico deslumbrante que também joga com outros elementos: citações de livros e documentos oficiais que aparecem na tela em gráficos impactantes, quebrando o ritmo das imagens, ou fragmentos de performances de John Coltrane, Nina Simone, Louis Armstrong, Thelonious Monk, Dizzy Gillespie, entre outros músicos, que também interferem na história para oferecer um contraponto sempre próximo ao ponto de ebulição da luta racial e anticolonialista da época. A mensagem é clara: a arte também é política, especialmente no uso de um arquivo exuberante e multiforme que não faz distinções de nenhum tipo. E embora às vezes os procedimentos para apresentar essas intersecções sejam um tanto arbitrários, ou a fórmula se torne esgotada ou repetitiva (estamos diante de um filme de duas horas e meia que, nesse sentido, reinventa o “cinema épico”), o filme não decepciona: politicamente irrepreensível, esteticamente inventivo e inovador, sua montagem 'hard bop' também o torna uma experiência audiovisual, no mínimo, inusitada.
É uma história tão deprimente quanto ultrajante – o assassinato de Lumumba, em 1961, decidido pelo próprio presidente americano Eisenhower como um “mal necessário” devido às pressões geopolíticas da Guerra Fria – que se torna um pouco menos infame e até mais suportável quando acompanhada por aquela música, aquelas canções, aqueles artistas, cúmplices involuntários de um golpe de estado ao ritmo do blues e do jazz.

