Hilda Hilst nasceu em Jaú (SP) e viveu boa parte de sua vida na chácara Casa do Sol, nos arredores de Campinas, hoje transformada em uma fundação
Hilda Hilst nasceu em Jaú (SP) e viveu boa parte de sua vida na chácara Casa do Sol, nos arredores de Campinas, hoje transformada em uma fundação | Foto: Lenise Pinheiro/ Folhapress

O Cedae - Centro de Documentação Alexandre Eulálio – na Unicamp, guarda o acervo de Hilda Hilst (1930-2004). Livros, cartas e fotografias chamam a atenção, mas suas Anotações de Sonhos, uma pasta pequena, sem muitos escritos, estão entre os documentos a que mais me dediquei para conhecer um pouco mais a autora.

O fato dela anotar seus sonhos cativa pela ideia de que os sonhos também podem ser literatura ou podem servir à literatura. O fato é que através destas anotações eu me sentia mais próxima do inconsciente de uma autora que marca a literatura brasileira no século 20.

As anotações datam dos anos 1970, embora eu possa não ter visto tudo que dizia respeito a HH enquanto dormia. Além da pasta, existiam ainda anotações de sonhos numa agenda.

É muito delicado visitar os sonhos de alguém, mesmo transcritos. Com luvas e todo aparato exigido para manusear aqueles documentos, eu me aproximava dos escritos de HH como quem entra no quarto onde alguém importante está dormindo, sem que possamos acordá-lo.

Sua letra me confundia um pouco como no caso de “meiguice”, palavra que parecia um hieróglifo e que, para se tornar legível, precisei da ajuda de Cristiano Diniz, que organizou seu acervo e tem livros publicados sobre a autora, incluindo o excelente “Fico Besta Quando Me Entendem: Entrevistas com Hilda Hilst (2013).

Depois de cerca de sete anos desde as tardes que passei no Cedae, entre 2013 e 2014, ainda me lembro das passagens importantes que encontrei naquele acervo, saindo dali para a leitura de livros da autora com a qual “convivi” por algum tempo num processo de imersão muito particular. Nos seu livros há um conteúdo tão intenso que acho melhor serem lidos em ambientes silenciosos, quando possível, ou até no movimento de um ônibus urbano quando os temos nas mãos e não aguentamos esperar para chegar em casa e iniciar a leitura.

“Júbilo, Memória, Noviciado da Paixão” (1974) é um dos livros mais bonitos de Hilda Hilst. Um diálogo entre a escrita livre e a tradição lírica, na forma “de canção de amigo” e gênero clássico. Nele, a poeta canta a ausência do amigo sempre esquivo, ocupado com os negócios. Então, ela canta e, encantada com seu próprio canto, cria um elogio ao amor.

Conta-se que Carlos Drummond de Andrade considerava este o melhor livro de HH e comentou com ela: “Você não dormiu com este homem.” Talvez o poeta considerasse que a força dos versos devia-se a essa lacuna, a essa ausência transformada num êxtase de palavras. Acontece.

Na orelha do livro, porém, fica claro que não há nenhum 'happy ending': “Ao fim o amado esquivo se dissolve ou se confunde com o homem morno, com o predador político, inimigo caricato da vida e da arte.”

O que não deixa de ser um ato de violência que, assim mesmo, reacende o espectro da paixão. Em outra crônica sobre HH já assinalei que na aflição da espera amorosa, ao contrário de Penélope, a poeta moderna remete à desolação dos tempos, não à esperança. Mas nem por isso, os poemas deixam de ser lindos, tão lindos quanto alguns sonhos. A dedicatória que ela faz é um registro que aviva a memória para sempre, ainda que alguns amores sejam quase míticos. Hilda dedica o livro a “AM.N. porque ele existe.”