Nenhum outro artista oriental marcou tanto pela sua originalidade quanto pela sua capacidade de falsificar. Como um dos maiores pintores chineses do seu tempo, ele viveu no Brasil entre as décadas de 50 e 70 e aqui produziu muitas das obras que hoje integram acervos de diversos museus pelo mundo.
Nascido em 1899, na província de Sichuan, China, Chang viveu em vários lugares do mundo à procura de inspiração para a sua arte. De Hong Kong a Taiwan, da Índia à Argentina, dos Estados Unidos a Mogi das Cruzes. Esta última, uma cidade da Grande São Paulo que encantou o velho artista pelo seu clima e natureza, às vésperas das comemorações do quarto centenário de São Paulo, em 1954.
Neste ano em que se comemoram 100 anos de seu nascimento
exposições e polêmicas dão o mote dos debates sobre seu trabalho, que ainda tem movimentado muito o mundo das artes orientais. O National Palace Museum de Taiwan, proprietário da maior coleção de obras e pertences pessoais de Chang, realizou uma exposição conjunta de suas obras com as do modernista Pablo Picasso entre o final do ano passado e o início deste ano em comemoração ao seu centenário. Desde que despontou internacionalmente, o mestre chinês foi comparado ao espanhol por diversos motivos. Ambos tornaram-se exilados de suas pátrias por razões políticas, Chang pelo comunismo e Picasso pelo fascismo, e ambos tiveram muitas mulheres durante as suas longas e ativas vidas. Mas a maior referência entre a vida dos dois consiste na inovação que eles promoveram na arte de seu tempo, um no Oriente e o outro no Ocidente. Chang teve um encontro com o mestre Picasso em 1956 em La Californie, propriedade mediterrânea de Picasso no sul da França. Naquela oportunidade os dois se presentearam com obras e posaram para uma histórica foto. O fato ficou conhecido pela imprensa da época como o encontro entre a nata da arte oriental e ocidental.
Para Paulo Chang, filho mais velho do pintor e o que mais conviveu com ele, seu pai sempre achou um absurdo ser chamado de "Picasso oriental". "Ele admirava Picasso como um grande artista, mas os estilos deles são completamente diferentes". Paulo, que vive em Pebble Beach, Califórnia, lembra-se do pai como uma pessoa alegre, cheia de vitalidade, que adorava a liberdade e viajava muito por lugares que lhe atraíssem pelas belezas naturais, uma das suas principais fontes de criação.
Seu aprendizado artístico, iniciado na infância sob os ensinamentos da mãe, foi desenvolvido dentro dos padrões da tradição chinesa onde é comum a prática de copiar trabalhos de mestres tradicionais para o estudo e aperfeiçoamento de técnicas de pintura e caligrafia. Chang foi um dedicado estudioso das três principais manifestações artísticas chinesas, a pintura, a caligrafia e a poesia. Sua importância, dentro dos processos de evolução histórica e estética da arte da China, consistiu na capacidade que teve de voltar às raízes dos mestres do passado e ainda assim trazer um sopro de modernismo a este estilo consagrado pela tradição. Dentre os eventos que homenageiam neste ano o mestre chinês, está uma mostra que será realizada com 50 obras suas produzidas durante o período em que morou nos Estados Unidos. Será na San Francisco State University, na Califórnia, de 26 de setembro à 20 de novembro e contará com palestras de artistas e acadêmicos que conheceram Chang, como James Cahil, C. C. Wang e Michael Sullivan. Produzida entre as décadas de 60 e 70, quando viveu em São Paulo e posteriormente na Califórnia, esta fase que integra a exposição foi o seu momento mais inovador e criativo, quando o pintor aproximou-se do Expressionismo Abstrato. Chang também entrou para a história pelas famosas falsificações que produziu ao longo de sua trajetória. Exímio copista voltado às obras tradicionais chinesas, ele era um grande colecionador de instrumentos de pintura antigos, tais como pincéis, tintas, sedas e carimbos de autenticação, muito usados por imperadores para imprimir suas marcas. Grande parte deste material servia também para a confecção de suas fraudes. Sua criatividade em falsificar surpreendeu acadêmicos e técnicos de arte de renomados museus. Muitas das falsificações eram baseadas principalmente em relatos de documentos antigos que descreviam seculares obras de mestres consagrados. Em sua maioria eram obras que haviam se perdido com o passar dos anos e das quais nunca mais se teve notícia. Graças aos contatos que fez na China, no início de sua carreira, Chang comprou da família imperial chinesa muitas das peças de sua coleção particular na década de 20. Isso tudo, aliado aos seus profundos estudos sobre arte, acabou lhe dando um grande prestígio no meio artístico chinês como expert. Nesta época, ele começou então a se utilizar de sua capacidade de imitar para progredir no comércio de obras. Como colecionador
ele foi proprietário de um respeitado conjunto de pinturas chinesas. Em meio a muitas obras-primas trazidas da China, Chang trouxe também para o Brasil, em 1954, suas falsificações. Seu filho Paulo admite que seu pai tenha feito falsificações. Chang teria sido motivado por críticas pejorativas feitas por especialistas em arte antiga aos seus trabalhos no início de sua carreira na China. Desmerecendo a capacidade do jovem Chang, os críticos teriam dito que o pintor não entendia nada de obras antigas; desde então eles passaram a ser o alvo das intrigantes mentiras criadas pelo pintor. "Meu pai prometeu que um dia iria mostrar a eles quem é que era o perito". E completa "se são estes os especialistas que orientam as aquisições de fraudes a colecionadores e museus, então está mais do que provado que eles não mereciam a posição que tinham". Depois de algum tempo que as obras eram vendidas aos colecionadores, Chang fazia questão de avisá-los de que a obra era sua, somente pelo prazer de ver os peritos em apuros. A visão que o ocidental tem da cópia de uma obra de arte é extremamente diferenciada da do oriental. Muitos artistas, como Bacon ou Picasso, se inspiraram em quadros de outros pintores em releituras que adaptavam os temas a seus parâmetros estéticos, com um objetivo de acrescentar algo aos originais. Na China, a cópia é comum no aperfeiçoamento da técnica e é vista como uma forma de reverência. Sob este aspecto, Chang não se diferenciou muito de outros artistas de sua geração. No entanto, o afinco com o qual ele se devotou na tentativa de ser o mais fiel possível aos pintores originais e de superar a si mesmo, fez com que ele se tornasse um expoente neste meio. Ele produzia suas fraudes para desafiar sua própria capacidade, para subjulgar experts e principalmente para se divertir. Em maio de 1997 o Metropolitan Museum de Nova York adquiriu, com muito estardalhaço junto à imprensa, um quadro intitulado "The Riverbank", atribuído a um pintor da dinastia Tang chamado Dong Yuan. A obra do século 10 é considerada uma espécie de Mona Lisa da arte chinesa e pertenceu, entre outros, a Chang Dai-chien. A despeito de toda propaganda feita pelo museu a respeito da obra, que se tornou a peça principal de seu acervo oriental, alguns especialistas afirmaram que a pintura era uma fraude produzida no século 20. A grande suspeita recaiu então sobre Chang. No final deste ano acontecerá no Metropolitan uma conferência com especialistas e acadêmicos, a fim de ampliar os debates sobre estes questionamentos de autenticidade. Sendo ou não Chang Dai-chien o autor de "The Riverbank" e independentemente dos motivos que o tenham levado a produzir suas falsificações, suspeita-se que ele tenha obtido muitos benefícios com essas comercializações. Alguns críticos afirmam que a sua vida luxuosa e o patrimônio acumulado pelo mundo, justificados em parte pelo êxito de sua carreira internacional, dão margem a dúvidas acerca de sua nebulosa história de fraudes.
Paulo Chang pensa que essas acusações são resultantes da cobiça suscitada em alguns pela fama e riqueza que seu pai conquistou ao longo de sua carreira. Jornalista e pesquisador da Universidade de Harvard, Carl Nagin, pesquisa há mais de 10 anos a vida e a obra de Chang. O resultado desta investigação deve ser concretizada na forma de um livro a ser publicado em breve. Nagin, que produziu em 1993 um documentário sobre o pintor intitulado "Abode of Illusion: The Life and Art of Chang Dai-chien" (Domicílio da Ilusão: A Vida e a Arte de Chang Dai-chien), afirma que Chang foi o primeiro artista da China a ter uma reputação internacional. Seu filme mostra sua trajetória e como a tradição e a inovação estiveram presentes em sua arte. Desde 1984 Nagin mantém algum contato com a história do pintor. Naquela época, ele produziu algumas reportagens sobre suspeitas de falsificações em torno de obras pertencentes a museus americanos. A partir de então ele conheceu alguns familiares de Chang na Califórnia e na China e colaborou na organização de uma mostra com trabalhos dele em uma galeria de Nova York . Nagin destaca que a família do artista contribuiu de forma extremamente significativa para a coleta de materiais de pesquisa. Exposições na Europa, ásia e América consolidaram a carreira internacional do pintor durante os anos 50 e 60. Uma exposição retrospectiva na Arthur M. Sackler Gallery de Washington D.C. em 1991 intitulada "Challenging the Past: The Paintings of Chang Dai-chien", que percorreu depois a Asia Society de Nova York e o St. Louis Art Museum, foi o reconhecimento máximo uma história de sucesso que ultrapassou as fronteiras da China. Suas fraudes remetem mais de mil anos de história da arte da China. Era como se hoje um artista pudesse produzir cópias de modernistas, renascentistas ou da antiguidade grega de forma que fossem praticamente perfeitas. A forma pela qual ele permeava os estilos impressionou peritos de todo o mundo e isso até hoje tira o sono de muitos. A grande dificuldade no trabalho de investigação pericial que busca desvendar as fraudes de Chang reside no fato de que ele usava materiais originais das épocas dos próprios artistas. Ou seja, análises científicas que tentaram fazer uma datação do material que compõe algumas pinturas foram inconclusivas, já que Chang produzia com o material de sua coleção de antiguidades. Ele dominou a forma e o conteúdo de uma arte milenar. Foi ao mesmo tempo gênio e falsário. Uma das esperanças nesta elucidação consiste na descoberta de uma caixa, contendo 475 carimbos, em sua residência de Mogi das Cruzes, em 1989, que estava fechada às vésperas de sua demolição. Esta coleção de Chang era formada por originais utilizados na autenticação e comprovação de propriedade de inúmeras obras da China antiga, mas muitos dos carimbos eram falsificações criadas por ele para tornar suas "obras" mais realistas. A comparação destes carimbos, que hoje estão em Washington, com muitas das pinturas suspeitas deverão esclarecer dúvidas de diversos museus. Para se compreender a quantidade de pinturas falsas feitas por ele deve-se conhecer a opinião do curador de arte chinesa da galeria Arthur M. Sackler, do Instituto Smithsoniano de Washington D.C., Joseph Chang. Em uma reportagem do jornal "The Washington Post" de janeiro, ele estima que todas as principais coleções de arte chinesa tenham uma fraude de Chang. Chang expôs suas obras algumas vezes no Brasil durante o período em que aqui morou. Paulo Chang diz que, na década de 60, seu pai participou da Bienal Internacional de São Paulo com quatro grandes obras. Participou, na mesma época, de uma exposição patrocinada por Assis Chateaubriand. Seu filho lembra-se também do encontro de Chang com o empresário pioneiro da televisão brasileira, "após a inauguração meu pai foi convidado pelo senhor Assis para almoçar na Casa Verde". Hoje, acredita-se que poucas de suas obras tenham ficado no Brasil. Alguns amigos do tempo em que morava em Mogi das Cruzes ainda têm suas obras. Dois de seus filhos ainda moram no Brasil, entretanto, afirmam não possuir nenhum original. Paulo, que mora nos EUA, não se recorda de nenhum museu brasileiro que tenha em seu acervo pinturas de Chang. "Eu acho que alguns ricaços ainda possuem obras dele". Quando chegou a Mogi das Cruzes, em janeiro de 1954, Chang Dai-chien chamava mais a atenção pela sua aparência exótica, com sua imagem de monge budista de longa barba branca, bata e cajado de madeira, do que pela sua fama de artista. Em seu sítio de 35 acres, hoje totalmente encoberto pela represa do Rio Jundiaí, ele recebia visitas diárias de marchands ou curiosos que vinham de longe para ter contato com o personagem e suas obras.
No Jardim das Oito Virtudes, uma grande obra de paisagismo idealizada e batizada pelo mestre com toda a sua inspiração poética, tudo remetia à sua terra natal. Sua memória foi o guia dos trabalhadores que reconstituíram o ambiente chinês. Os bonsais, o lago, as pedras e troncos de madeira com formas inusitadas e os gibões soltos pela propriedade remetiam os visitantes às longínquas paisagens chinesas. Uma das pessoas que acompanharam Chang em seu exílio ao Brasil foi o técnico em molduras Tak Ren Huang, encarregado de cuidar do acabamento das obras do mestre. O motivo de sua vinda foi a impossibilidade de se encontrar no Brasil alguém que conhecesse as técnicas usadas na China. Lá, a moldura não era a mesma comumente usada no Ocidente, já que a pintura era feita em papel solto e posteriormente presa a uma estrutura de madeira permitindo que a obra fosse enrolada como um pergaminho. Segundo Huang, que mora no distrito mogiano de Taiaçupeba desde que Chang ali chegou, eles fugiram da China prevendo a perseguição promovida pelos revolucionários do partido comunista. "Eles entraram em confronto com quem tinha cultura, quem tinha estudo". Ele lembra que Chang dizia que teve sorte pois se estivesse na China comunista teria sido morto. O Exército Vermelho de Mao Tse-tung perseguiu nos anos 60, durante a revolução cultural chinesa, bibliotecas e coleções de arte particulares. As obras de Chang foram especialmente requisitadas pela sua aceitação no Ocidente e também pelas divergências políticas alimentadas por Chang contra o comunismo. A sua fama internacional levou a pilhagem e destruição de inúmeras das obras que tinha executado até então. Após deixar a China em 1949, ele e sua família passam por Formosa, Hong Kong e pela Índia. De volta a Hong Kong, Chang conheceu Huang em 1952 e contratou seus serviços. Chang, a procura de um lugar para fixar residência, acabou seguindo o conselho de um amigo e se mudou para a Argentina. Como não conseguiu obter um visto permanente lá, Chang resolveu vir para o Brasil. Certa vez, retornando à Argentina após uma das muitas viagens que fazia aos EUA para expor seus quadros, seu navio fez uma escala no Rio de Janeiro e ele se encantou com as belezas naturais que conheceu. Na segunda vez que passou pelo Brasil, Chang reencontrou um velho amigo conterrâneo de Sichuan, província do noroeste chinês, chamado Tsai. "Já que você adorou a sua primeira viagem ao Rio, por quê não vem conhecer Mogi das Cruzes. Mogi é uma cidade pequena , tem serras e rios e o melhor de tudo, não é tão quente quanto o Rio" teria dito o amigo Tsai ao pintor, segundo as lembranças de seu filho Paul Chang. Conhecendo a região ele teria gostado de um sítio que estava à venda, vizinho ao de seu amigo. Dois anos e muito dinheiro depois, duas grandes casas e um estúdio foram edificados e o seu jardim paradisíaco batizado de "Jardim das Oito Virtudes" foi finalmente construído. A zona rural de Mogi com o seu clima mais ameno, com paisagens ricas e inspiradoras se transformou no principal refúgio do artista. Entretanto, uma reportagem publicada no jornal "Washington Post" aponta São Paulo como um refúgio da máfia chinesa após a revolução comunista. Um diplomata representante do Partido Nacionalista de Taiwan no Brasil daquela época, chamado William Kiang, teria recebido a incumbência de proteger Chang e também alguns líderes do crime organizado banidos pelos comunistas. Paulo Chang contesta estas afirmações dizendo que "estas conversas de que meu pai mudou para o Brasil por causa da máfia chinesa e de ser protegido por um diplomata é puro boato". Segundo ele, sua família nunca conheceu e nem nunca ouviu falar neste diplomata.
e-mail do autor: [email protected] Guilherme Gorgulho Braz especial para a AE Há 100 anos nascia o renomado pintor chinês que viveu no Brasil, inovou a arte chinesa e enganou especialistas de todo o mundo São Paulo, 18 (AE) - Excêntrico e ambíguo. Assim foi o mais famoso pintor chinês do século 20, Chang Dai-chien, que deixou um legado de mais de 30 mil obras durante os seus prolíficos 84 anos de vida.