Os corações dos músicos da Havana Velha
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quarta-feira, 29 de março de 2000
Por Mauro Dias
São Paulo, 30 (AE) - Lá pelas tantas, Compay Segundo pede ao Homem lá de cima - olha para o céu, faz um gesto expressivo, nenhuma reverência, uma conversa de gente que se conhece e aprecia - que lhe dê um pouco mais de tempo, para aproveitar o trazido pelo sucesso: nem tanto o dinheiro, mas a possibilidade de viajar, ver o mundo e, sobretudo, cantar. São seus prazeres.
Um pouco antes, Ibrahim Ferrer diz que se eles, referindo-se não apenas a seus companheiros de palco, mas a todos os habitantes de sua cidade, de sua ilha, houvessem optado pelo material, teriam submergido, desaparecido. Apegaram-se a outros valores. Conversam com seus santos de devoção - Ibrahim põe vidros de perfume e copos de rum sob o manto de seu São Lázaro -, encontram-se para cantar, andam pelas ruas onde todos se conhecem.
As falas dos dois cantores fabulosos não podem ser entendidas como a sugestão de um mundo idílico - eles sabem que estão longe do paraíso.
A câmera de Wim Wenders não cede ao apelo maniqueísta. Mostra as casas miseráveis (mas têm fogão, geladeira, cama, bonecos de super-heróis para as crianças, rum, charutos), os belos prédidos arruinados, as ruas sem iluminação noturna, os carros caindo aos pedaços, mostra as crianças aprendendo música, fazendo balé e ginástica ao som de linda música.
Depois mostra as ruas de Nova York, os músicos cubanos passeando por elas, admirando-as, louvando beleza e altura dos edifícios gigantescos, procurando a Estátua da Liberdade do mirante do Empire State Building. A Havana Velha dos cantores e instrumentistas do Buena Vista Social Club, a cidade, seus postes caídos, calçamento esburacado, seus automóveis dos anos 50, é miserável como uma favela brasileira, como a Cidade Baixa de São Salvador, Bahia. Lugares onde se produz a grande música brasileira.
Mas "Buena Vista Social Club, o filme de Wim Wenders, não foi rodado para fazer a apologia de uma pobreza purificadora e culturalmente poderosa, o que seria tolice. Nem mesmo insinua que a música maravilhosa - de Ibrahim, Compay, Rubén Gonzales (a que se atribui, erroneamente, a paternalide do também pianista Gonzalo Rubalcaba; Gonzalo é filho de outro pianista, Gillermo Rubalcaba, contemporâneo da turma do Buena Vista), Omara Portuondo, Benito Repilado Labrada, Barbarito Torres (que percussionista maravilhoso, que gênio!), Manuel Guajiro Mirabal, Lázaro Villa, Alberto Valdés e os outros - exista apesar da pobreza material.
O que há é outra maneira de estar no mundo e de expressar a felicidade por estar no mundo. A maneira de estar no mundo é aquela, simples, que concede prazeres frugais (ou, de um certo ponto de vista, frugais) e exige pouco em troca. A expressão desse prazer é a música arrebatadora, emocionante, música que, curiosamente, o realismo socialista escondeu e que volta à tona quando o sistema político encolhe seus poderes.
O responsável pelo renascimento desses músicos é o guitarrista norte-americano Ry Cooder. Ele foi a Cuba para gravar um disco de world music, como conta no filme: um encontro de africanos com cantores e compositores camponeses cubanos. Os africanos ficaram presos em Paris. Para aproveitar a viagem, Cooder resolveu trabalhar com os músicos disponíveis. Soube que estavam por ali, pela cidade, dispersos.
Um jovem preocupado com a tradição da música cubana, o cantor e percussionista Juan de Marcos Gonzáles, tomou a si a tarefa de reuni-los. Os encontros ocorreram no velho estúdio da Egrem, a empresa estatal do disco e da música cubanos (que há 40 anos não recolhe um tostão dos direitos autorais internacionais da música cubana).
Encontraram-se, foram lembrando as músicas ali mesmo, no estúdio, gravando-as em seguida. Foi depois do sucesso internacional do disco "Buena Vista Social Club" que Wenders fez o filme. O documentário não é, portanto, sobre a gravação. Resgata, de forma magnífica, a história da gravação. Os números musicais de palco foram registrados nos concertos do Buena Vista em Amsterdã e Nova York.
Há outros momentos musicais deslumbrantes - quando, por exemplo, Lázaro Villa sola Siboney, ao violão próximo aos trilhos de uma ferrovia decrépita. Há uma paixão, uma entrega tão absoluta naquele dedilhado que faz o momento epifânico. Mas o grande trunfo de Wim Wenders foi perceber a eloquência do olhar de Ibrahim Ferrer. É um olhar como eram o de Nélson Cavaquinho, Clementina, Cartola. Sem uma palavra: um olhar que compreende o mundo, aceita-o, aproveita-o, segue em frente. O close final é nos olhos de Ibrahim, como Fellini fez com os de Cabíria. Tudo dito. Serviço - Buena Vista Social Club. Documentário. Direção de Wim Wenders. Livre. Distribuição:Filmes do Estação