Não é fake news. Corre por aí, por aqui e por onde mais no mundo a série Netflix já estreou, que – e esta é uma verdade universalmente aceita –, para ter sucesso uma comédia romântica de época, ambientada naquele curto período da Regência Britânica (1811-1820), deve ser, além de divertida, também sedutoramente permissiva e não se levar muito a sério. E “Os Bridgertons” vem sendo avalizada pelo público com um buquê de bondades nesses e em outros quesitos. E se você acaba de maratonar (verbo-modalidade entronizado na Olimpíada dos streamings) pelos seus oito capítulos da temporada de estreia já sabe que este é um animado e feérico folhetim com todos os elementos de drama, sexo e diversidade, um grande e infindável baile capaz de corar de inveja todo o time de dramaturgos da Rede Globo.

A produtora Shonda Rhimes apostou pesado nas peripécias palacianas de um punhado de personagens criados pela escritora americana Julia Quinn e, com a experiência hospitalar das muitas temporadas de “Grey’s Anatomy” e dos imbróglios políticos de “Scandal”, coloca em cena um núcleo familiar aristocrático de Londres, os Bridgertons do título: mãe e sete filhos, dados a conhecer em fogo lento mas em alta temperatura constante.

Simon (Regé-Jean Page) e Daphne (hoebe Dynevor) formam o par central da deliciosa comédia romântica
Simon (Regé-Jean Page) e Daphne (hoebe Dynevor) formam o par central da deliciosa comédia romântica | Foto: Netflix/ Divulgação

Esta primeira temporada, estrategicamente colocada (para o espectador) neste período de fim de ano, com certeza como aquela válvula escapista para afugentar os fantasmas pandêmicos, e como uma espécie de pré-vacina indolor e alentadora, está centrada em Daphne (Phoebe Dynevor) e seu envolvimento romântico complicado com Simon Basset, duque de Hastings (Regé-Jean Page). Todas as venturas e desventuras, com mais ou menos escândalos dos personagens em desenvolvimento, são registradas segundo a ótica de uma misteriosa cronista de costumes, uma indiscreta colunista social palaciana, Lady Whistledown (que também faz a narração em off, na voz indefectível de Julie Andrews).

Ao som de um arranjo erudito de “Thank You, Next”, de Ariana Grande, e de outros hits contemporâneos que receberam roupagem musical de época, desfilam revelações, romances, ousadias sexuais, tiradas cômicas. O amor está à solta nos bailes (média de um por noite...) e passeios vespertinos ao ar livre. “Os Bridgetons” é uma fantasia paa quem gosta e desfruta de comédias (farsas, dissimulações, tolices?) de época, desde as adaptações de Jane Austem até séries como “Downton Abby”. Mas parece bem claro que o criador desta série, Chris Van Dusen, contesta os limites do retrato de época para criar seu próprio universo. Aqui não importam os anacronismos, pois a realidade na qual se situam os personagensn é um híbrido entre o documentado e o imaginado, uma espécie de limbo onde a idade daquele século XIX se coloca paralelamente grudada aos códigos da contemporaneidade deste nosso século XXI.

Sob este ponto de vista, a série chega àquele ponto onde o decoro colocou barreiras a James Austen. Vemos sexo passional dentro e fora do casamento, masturbações reveladoras, orientações sexuais fora das normas, gravidez não desejada, nudez, lutas e sobretudo diálogos sinceros que escandalizariam muita gente “de bem”. Mas apesar dessa, digamos, ousadia, a série nunca perde vista seu romantismo “square”, os toques de comédia e a essência fantasiosa de sua proposta. E entre toda essa ligeireza e diversão herdadas da comédia romântica há também espaço para o aspecto mais explorado neste tipo de histórias: o lugar e o papel das mulheres na sociedade. As mãos femininas que escrevem e as mãos femininas – são muitas – que dirigem os episódios.

“Os Bridgertons” merece um veredito: uma série que não tem vergonha de ser romântica, engraçada e crítica em certa media. E às vezes até bem cafona.