Os eventos descritos em “Os 7 de Chicago” – seria empolgante título para um gangster movie, mas não é o caso, mesmo com aquela máfia politica nos bastidores – ocorreram em 1968-69, portanto há meio século. O excelente roteirista e bom diretor Aaron Sorkin (“The West Wing/Nos Bastidores do Poder”, 7 temporadas, 156 capítulos !) começou a trabalhar na escritura em 2007. Mas poderia ter sido agora mesmo, neste inacreditável 2020: como são relevantes e atualíssimos os fatos contados neste filme que a Netflix lançou mundialmente via plataforma na ultima sexta-feira (16).

O que foi mesmo que o filósofo humanista espanhol George Santayana escreveu ? “Aqueles que não conseguem se lembrar do passado estão condenados a repeti-lo”. E este é também o lembrete de Sorkin neste momento em que é extremamente necessário. Mas se vai ou não ser levado em conta já é outra conversa.

Em seu segundo longa-metragem como diretor (e com uma exuberante e bem recompensada bagagem como roteirista) depois de “A Grande Jogada” (2017), Sorkin revisita acontecimentos que marcaram a fogo a década de 1960, e sobre os quais foram realizados filmes, escritos livros, encenadas peças e compostas canções. Por que de novo? E por que agora ? Nesses tempos em que a cisão é mais do que nunca exacerbada através das redes e da mídia, em que Trump endossa grupos supremacistas e promove fake news e discurso de ódio, e em que o racismo estrutural está ainda mais escancarado na sociedade estadunidense, Sorkin recua cinco décadas para refletir sobre questões como contracultura, violência política, formas de protesto e as contradições e misérias do sistema de seu país. Nesse sentido, “Os 7 de Chicago” não é apenas um bom drama judicial, mas também lança um acurado olhar sociocultural sobre uma época crucial, uma mirada muito valiosa e relevante e crucial sobre esse nosso tempo decisivo e determinante.

Filme recua cinco décadas para refletir sobre questões como contracultura, violência política, formas de protesto e as contradições e misérias do sistema dos EUA
Filme recua cinco décadas para refletir sobre questões como contracultura, violência política, formas de protesto e as contradições e misérias do sistema dos EUA | Foto: Netflix/ Divulgação

Não há nada alegórico sobre o julgamento que está no filme. É uma cronologia direta dos eventos que produziram a sangrenta Convenção Nacional Democrata de 1968, em Chicago. Os distúrbios antiguerra do Vietnam no Lincoln Park colocaram manifestantes desarmados contra policiais fortemente aparelhados. No início do ano seguinte, o procurador-geral do recém-empossado Richard Nixon, John Mitchell, decidiu ir atrás dos oito “lideres” para dar o exemplo. As acusações foram conspiração e incitação à revolta. O filme cobre e destaca os principais lances do julgamento que durou cinco meses, evocando os principais lances dos protestos (antes e depois da explosão de violência).

Com ritmo acelerado, encrespado pelas variações da certeira fuzilaria verbal criada por Sorkin (um mestre em tramas orais), combinando harmonicamente procedimentos convencionais de tribunal com as reconstituições dos protestos e imagens documentais, “Os 7 de Chicago” oferece uma cartilha absorvente sobre um capítulo bizarro – e lamentavelmente significativo – da história dos EUA. O fato de que o filme é também uma vitrine para algumas das performances mais cintilantes desde atípico 2020 (já com apostas para Oscars e Globos de Ouro) transporta o trabalho de Sorkin para além de lição de História e o transforma em algo muito mais animado, emocionante e visceralmente divertido – na verdade, o diretor dá ainda mais cores, luzes e sons ao circo em que se transformou o julgamento, obtendo um mix rico em nostalgia, arrependimentos e interpretações incríveis.

Há tantos personagens marcantes para acompanhar em “Os 7 de Chicago”, tantas pautas, rivalidades e efeitos colaterais surpreendentes (Michel Keaton como o ex-procurador-geral dos EUA, Ramsay Clark) que somente a espécie narratológica proposta por Roland Barthes, mixando não ficção e ficção funcionou para Aaron Sorkin. O domínio do material compilado e manipulado (no melhor sentido) por ele, bem como seus instintos e sua sagacidade como dramaturgo resultam em algo muito mais fundo e emocionalmente envolvente do que uma mera narrativa baseada em fatos.

O elenco está irrepreensível, com os atores seguindo com muita confiança a linha perigosa entre personificação e caracterização. Todos ótimos, mas Sacha Baron Cohen brilha quando lembra com seu jeito hippie-trash como era inteligente o ativista Hoffman. Mas quem por duas horas continuamente ameaça roubar todas as cenas é o juiz (o outro Hoffman na sala) misto de republicano odiento, senil destrambelhado, desdenhoso , parcial – Frank Langella deverá ser bem lembrado nas listas de premiação.