Christopher Nolan é daqueles raros realizadores que dificilmente deixam o público indiferente. Podemos citar a maioria de seus filmes (“Memento”, “Inception”, a trilogia Batman, “Dunquerque”, “Tenet”): todos provocam o espectador como poucos diretores conseguem. “Oppenheimer” não é exceção. Aqui, Nolan mergulha na cinebiografia, gênero que até então não tinha explorado, e o faz focando numa das figuras mais controversas do século XX, Julius Robert Oppenheimer, tristemente conhecido como “o pai da bomba atómica”.

Longo em seus robustos 180 minutos – mas jamais enfadonho ou perdulário –, magnificamente explicado através de um roteiro de caligrafia exemplar, rigoroso e meticuloso nos detalhes essenciais e na resenha histórica, sugestivo na interpretação dos fatos, lúcido e vibrante na captação de época e nos seus conflitos políticos, bélicos e ideológicos, “Oppenheimer” é drama denso e profundo sobre uma das mentes mais brilhantes e atormentadas da História, e cujo trabalho levou a uma das criações mais monstruosas, mais aberrantes que a humanidade já conheceu.

O filme é baseado no livro “Oppenheimer: O Triunfo e a Tragédia do Prometeu Americano” (edição brasileira recente da Intrínseca), biografia vencedora do Prêmio Pulitzer de 2005, escrita por Kai Bird e Martin J. Sherwin. O roteiro, adaptação do próprio Nolan, descreve parte da vida de Oppenheimer, passando por seus anos acadêmicos, sua vida pessoal, até sua participação no Projeto Manhattan, no qual foi encarregado de dirigir um laboratório secreto cuja missão era fabricar a bomba atômica que, se bem-sucedida, poria fim à Segunda Guerra Mundial. Oppenheimer, em última análise, é responsável pela criação da grande arma de destruição em massa que mudou para sempre a geopolítica mundial. Tanto no livro como no filme, o personagem afinal surge mais como vítima da conspiração de um sistema inacreditavelmente perverso e kafkiano.

GÊNIO ATORMENTADO

Fiel a seu estilo, Christopher Nolan nos conduz pela vida desse gênio atormentado através de duas linhas do tempo. Uma, a cores, é a que traça a trajetória de Oppenheimer desde a década de 1920, quando ele viajou pela Europa como estudante universitário, conhecendo os gênios que despertaram sua curiosidade sobre a física quântica, época dos primeiros passos no campo intelectual. A outra linha do tempo, que num piscar de olhos passa para o preto e branco, nos leva a reviver a cruel, penosa batalha travada entre Oppenheimer e Lewis Strauss (Robert Downey Jr.), então presidente da Comissão de Energia Atômica dos Estados Unidos. Esse embate ocorre na década de 50, nos anos posteriores à criação da bomba, quando é realizada uma auditoria interna cujo objetivo final era desacreditar a figura do cientista.

“Oppenheimer” mescla momentos coloridos, narrados do ponto de vista do protagonista, com closes pensados ​​para transmitir uma sensação de proximidade e intimidade, enquanto os segmentos sufocantes em preto e branco capturam o ponto de vista de Strauss tentando encurralar Oppenheimer com acusações forjadas de supostos laços comunistas que o colocam como uma ameaça potencial aos Estados Unidos.

A história do filme é construída aos poucos, mas graças ao ritmo preciso do roteiro, a tensão surge no ponto certo. No momento em que os cientistas do Projeto Manhattan se preparam para realizar o primeiro teste de detonação no deserto, podemos sentir o mesmo nervosismo de todos os homens que se preparavam para testar aquele longo período de estudo e teoria que mudariam a história para sempre. O filme não se debruça sobre as complexidades da ciência por trás da construção da bomba, nem se desgasta com suas consequências devastadoras em e pós 1945. Em nenhum momento são mostradas imagens da detonação das bombas lançadas sobre o Japão.

Cillian Murphy, à esquerda, interpreta Julius Robert Oppenheimer, um personagem carismático da história trsitemente conhecido como "o pai da bomba atômica"
Cillian Murphy, à esquerda, interpreta Julius Robert Oppenheimer, um personagem carismático da história trsitemente conhecido como "o pai da bomba atômica" | Foto: Divulgação

SEM JULGAMENTOS

Outro ponto louvável no filme é que ele não se detém em julgar a figura do personagem-titulo, algo que fica inteiramente a critério do espectador. O filme traça a jornada pelo processo e o que ele significou, tanto para Oppenheimer quanto para todos que participaram da criação da bomba. Uma das crenças do cientista era que, uma vez calculado o alcance da bomba e a destruição da qual era capaz, isso serviria como lição para acabar com a ambição das nações de adquirir qualquer arma de destruição em massa. No entanto, foi o começo de algo muito maior, que transcendeu completamente a figura e o poder de Oppenheimer.

Claro que é impossível não citar Cillian Murphy no papel de Oppenheimer. Um ator capaz de canalizar infinitas emoções em sua expressão, principalmente por meio daquele penetrante olhar cristalino que invade a tela a cada momento. Oppenheimer era muito carismático, algo de que Murphy se aproveita, especialmente durante a juventude.

Sem dúvida um triunfo para este irlandês de 46 anos, embora o crédito não seja apenas dele. Downey Jr., Emily Blunt, Florence Pugh e Matt Damon se destacam dos demais, todos aliás muito bons. Downey Jr. como o astuto, inseguro e poderoso Lewis Strauss, principal antagonista do filme, constrói uma de suas melhores atuações. Florence Pugh brilha com seu breve tempo na tela como Jean Tatlock, a jovem com quem Oppenheimer teve um relacionamento complexo de vários anos durante seu tempo em Berkley. Também bela a atuação de Emily Blunt como a sofrida Kitty Oppenheimer, esposa do cientista.

A estrutura fragmentada de “Oppenheimer” está de acordo com os conceitos de fissão e fusão exibidos no início do filme. Isto é, a ideia de separação e combinação de elementos que deu origem à figura de Oppenheimer, como herói e vilão de sua própria história. Com raro brilho entre seus pares, Christopher Nolan orquestra ao longo de 3 horas uma perfeita sinfonia de caos, muitas vezes ilustrada com imagens de átomos, ondas de choque e vibrações, imagens que o próprio personagem tinha em mente. O homem que viu o horror e a destruição cara a cara, mas que foi encorajado a dar o passo decisivo, deixando claro que não há criação sem consequências. Não é um filme de terror, pois não se processa dentro do gênero, mas o terror que exibe está presente e dá lugar ao desespero, com um final devastador. E esclarecedor.

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